A Imodéstia do Juiz Modesto

O presidente da Câmara do Crime do Tribunal Supremo, Daniel Modesto Geraldes, vive numa residência apreendida pela Procuradoria-Geral da República (PGR), no âmbito do processo de recuperação de activos. Para vários juristas, o facto de o juiz Modesto viver numa propriedade apreendida em autos cujo processo ainda não foi a julgamento configura abuso de poder. A falta de transparência pública que está associada aos processos de apreensão e distribuição de bens tem este resultado nefasto: parece tudo feito “à vontade do freguês”. Na verdade, não se percebe a que título o juiz Modesto ocupa a casa em questão. Será um sub-fiel depositário? Tem algum título legal de transacção da propriedade, ou tratou-se de uma ocupação pura e simples, que pode, no final de contas, constituir um crime de abuso de confiança?

Trata-se de uma residência T4 no Condomínio Vila Mar, no bairro do Talatona, em Luanda, adquirida, em 2009, pelo ex-director do Instituto Nacional de Estradas de Angola (INEA), Joaquim Sebastião, por um milhão e meio de dólares. O ex-gestor público (2004-2010) foi detido a 31 de Janeiro de 2019 e deverá ser julgado na 7.ª Secção da Sala Criminal da Comarca de Luanda pelo juiz Adélio Chocolate, por crimes de peculato, associação criminosa e branqueamento de capitais. 

E aqui levanta-se outra dúvida: não tendo havido trânsito em julgado do caso e tratando-se de mera apreensão e não de entrega voluntária, não se percebe como pode a casa ser entregue a alguém. A não ser – e esta é outra hipótese – que o juiz Modesto seja mero arrendatário e pague uma renda, que será deduzida do valor de uma eventual indemnização de Joaquim Sebastião ao Estado.

O grande problema é que tudo parece acontecer fora da normalidade dos processos judiciais, criando, por isso, a aparência de se estar perante uma espécie de saque medieval, em que cada um enche o saco até não caber mais… A bem do bom funcionamento da justiça, o Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA) deveria disponibilizar um serviço público consistindo na criação de um portal digital onde constasse a lista de todos os bens apreendidos no âmbito do chamado combate à corrupção, a sua situação jurídica e o seu destino provisório ou definitivo, consoante a evolução processual. Só assim se evitariam mais escândalos, rumores e más práticas.

Esta situação surge na sequência de outro fenómeno inexplicável. Após ter gastado mais de 54 milhões de dólares a adquirir apartamentos nas Torres da Cidadela, para os magistrados dos tribunais superiores, vem agora o governo de João Lourenço desembolsar 24,8 mil milhões de kwanzas (equivalentes a 49,2 milhões de dólares) para a aquisição de 31 residências para os juízes do Tribunal Supremo, no Condomínio Boavida. Estamos a falar de mais de 100 milhões de dólares para acomodar alguns juízes, em processos, novamente, sem nenhuma transparência. Todo esse apoio parece colocar, cada vez mais, tais juízes na condição de dependentes, como parece ser o caso de Daniel Modesto, que, com excesso de confiança e sem que se perceba o fundamento legal, ocupa casa alheia como se de um sem-abrigo se tratasse. Curiosamente, Daniel Modesto preside à comissão criada pelo Tribunal Supremo para negociar com o governo e o patrão do Grupo Boavida, o empresário Tomasz Dowbor, a aquisição das casas. A comissão inclui a juíza conselheira do Tribunal Supremo, Teresa Marçal.

Esse caso de aparência irrelevante revela, sobretudo, quão grave é a gestão do governo. Excede-se em desperdiçar dinheiros e bens públicos de uma forma arrepiante, mas não sabe ou não quer fazer contas para racionalizar despesas e poupar para o bem comum. É um governo que, tal como o que o precedeu, aparenta ter sido aprisionado pela acomodação de interesses e benefícios daqueles que servem para manter o poder e não dos que realmente servem a pátria.

Na reunião plenária do Tribunal Supremo (TS), de 3 de Fevereiro, vários juízes conselheiros acusaram Daniel Modesto de ser o principal apoiante das alegadas ilegalidades cometidas pelo presidente da instituição, Joel Leonardo. Acusaram-no ainda de estar a exercer o cargo de presidente da Câmara do Crime de forma abusiva, porque o seu mandato terminou há um ano, bem como de ocupar ilegalmente uma casa apreendida, entre outros actos. Em sua defesa, conforme apurou o Maka Angola, Daniel Modesto demarcou-se de qualquer aliança com Joel Leonardo e referiu que, se tivesse mancomunado com o presidente do TS, não estaria a viver na referida residência, que descreveu como tendo sido “vandalizada e sem janelas” antes da sua ocupação. O SENRA apreendeu a casa em bom estado de habitabilidade, conforme fontes desta instituição, segundo as quais, aliás, o proprietário anterior terá manifestado o seu interesse em recomprá-la pelo valor de 15 milhões de dólares, mas obteve uma resposta negativa do SENRA. Teria sido um valor que, a entrar nos cofres do Estado, indiciaria uma gestão astuciosa da coisa pública.

A questão das casas para os magistrados poderia ter sido solucionada, com poupança para as finanças públicas, caso o governo prosseguisse com a proposta apresentada em carta dirigida pelos juízes Norberto Capeça, Teresa Buta, Anabela Vidinhas e Joaquina do Nascimento ao presidente da República. Nessa carta, os juízes solicitavam acesso ao Fundo de Fomento Habitacional, para que cada um dos magistrados pudesse adquirir a sua própria residência com créditos bonificados. Para surpresa dos mesmos, apesar da anuência de João Lourenço, o Ministério das Finanças optou pela aquisição directa das habitações. Tal procedimento, oneroso para o Estado, tem causado a distribuição opaca das propriedades, continuando muitos dos juízes do Tribunal Supremo sem residência de função nem habitação própria. A razão pela qual o ministério decidiu de forma diferente da indicada pelo presidente da República, com mais custos e menor transparência, deveria ser adequadamente investigada.

Apreensão

A 7 de Junho de 2019, para garantir a sua libertação condicional, Joaquim Sebastião, que permaneceu detido seis meses, elaborou uma lista do seu património, no valor de 53 milhões de dólares, “visando oferecer a sua colaboração a bem do Estado e com a poupança de recursos e de expedientes demorados”, tendo-a entregado ao SENRA da PGR.

Da referida lista, voluntariamente elaborada pelo arguido Joaquim Sebastião, constam 12 vivendas de luxo nos bairros do Miramar, Alvalade, Maculusso, Talatona e na península do Mussulo, incluindo a famosa vivenda junto da sede da UNITEL, então avaliada em 15 milhões de dólares. A lista incluiu ainda oito apartamentos de luxo em Luanda e Lisboa, uma casa no Brasil, e outros terrenos para além do Centro de Estágio de Futebol no Sequele, calculado em 19 milhões de dólares. O visado adicionou um total de 25 viaturas topo de gama, camiões e carrinhas à lista.

Como o sistema judicial angolano funciona de forma extraordinária, mais de um mês depois da entrega “voluntária” da lista, o SENRA, na pessoa do procurador Simão Chaluca, emitiu o mandado de apreensão do referido património, a 23 de Julho de 2019. Duas semanas depois, a 8 de Agosto, o SENRA procedeu com os autos de apreensão individual dos bens constantes da lista entregue. Para o efeito, nomeou o Instituto de Gestão de Activos e Participações do Estado (IGAPE) como fiel depositário dos bens em questão. Ou seja, o SENRA não procedeu a nenhum tipo de investigação sobre o património de Joaquim Sebastião. Limitou-se a pressionar para que o mesmo fizesse a listagem dos seus bens. Como resultado desse método preguiçoso de trabalho, Joaquim Sebastião é acusado de ter causado prejuízos ao Estado que não ascendem aos 10 milhões de dólares, comparados com o valor cinco vezes superior dos bens apresentados.

Este tipo de procedimento levanta dois tipos de inquietações. Por um lado, o SENRA não dá sinais de se empenhar em nenhum tipo de investigação, apenas andando ao sabor de rumores e medos. Joaquim Sebastião poderia ter o triplo do que indicou e o SENRA não o saberia. Por outro lado, o valor dos bens apreendidos a Sebastião é bastante superior ao que alegadamente ele deverá ao Estado. Mais uma vez, a falta de informação adequada leva-nos ter dúvidas. Tratou-se de uma apreensão de que tipo? Uma possível resposta seria que a apreensão se baseou no facto de o património de Sebastião ser incongruente – querendo isto dizer que Sebastião não teria rendimentos que justificassem aquele património. Mas, se assim for, onde está a fundamentação desse argumento?

Fonte da PGR reconhece a urgência de um esclarecimento público por parte desta instituição sobre os bens apreendidos e entregues à gestão do IGAPE e do Cofre Geral de Justiça, sob tutela do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos: “Estão [os fiéis depositários] a distribuir abusivamente os bens apreendidos. É triste e vergonhoso para o Estado. A PGR não tem absolutamente nada a ver com isso. Não se responsabiliza pelo destino dado aos bens colocados à guarda do Cofre de Justiça e do IGAPE [tutelado pelo Ministério das Finanças].” Porém, mais do que o esclarecimento público, deve ficar disponível a informação pública que atrás se referiu: uma lista digital com os activos apreendidos, os fundamentos gerais da apreensão e o destino provisório ou definitivo dos bens. No âmbito da recuperação de activos, e sob a gestão do Cofre de Justiça e do IGAPE, deve haver uma sindicância independente aos bens apreendidos pelo SENRA. Os governantes não podem continuar a arrogar-se como proprietários do património público e donos e senhores do destino dos angolanos.

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