Tribunal Supremo: a Excursão do Neocolonialismo

Um comunicado do secretário-geral do Tribunal Supremo, juiz Altino Kapala Kayela, datado de 13 de Janeiro passado, dava conta de que, a partir de 17 de Janeiro, todos os juízes conselheiros se deslocariam a Lisboa para uma troca de experiências com os seus homólogos do Supremo Tribunal de Justiça português. Informava também o mesmo comunicado que visitas semelhantes ocorreriam a Estrasburgo, sede do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e a Haia, onde se situa o Tribunal Penal Internacional.

A avaliar pelo texto do comunicado, estaríamos perante uma bizarria inusitada, mesmo para um colectivo que nos últimos tempos tem levantado mais perplexidades do que tranquilidades. Nunca antes se ouviu falar da deslocação simultânea de todos os juízes do Tribunal Supremo para fora do país. É que, mesmo em férias judiciais, os tribunais não param, e há sempre processos para despachar e acórdãos para escrever.

Além do mais, a escolha de Estrasburgo e de Haia, além de Lisboa, era surpreendente, mais parecendo um desígnio excursionista do que uma jornada de trabalho. Angola não faz, obviamente, parte da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de que deriva o Tribunal dos Direitos Humanos em Estrasburgo. Faria mais sentido, portanto, uma viagem ao Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, cuja sede é em Arusha, na Tanzânia. De igual modo, Angola nunca foi um Estado-Parte do Estatuto de Roma, que estabelece o Tribunal Internacional Penal de Haia, ainda que neste caso o pudesse ser.

Tudo parecia demasiado desconcertante para ser real. E o facto é que a realidade se afigura diferente – resta saber se para melhor ou para pior.

A primeira consequência do comunicado foi, segundo as nossas fontes, o espanto entre alguns dos juízes do Tribunal Supremo, que desconheciam tal intenção; na verdade, quatro deles já se encontravam em Lisboa por outros motivos, uns de férias, outros para tratamento médico e outro ainda em estudo de doutoramento.

Aliás, este último caso merece uma referência prévia. Trata-se da juíza conselheira Joaquina do Nascimento, que, como se sabe, era a primeira na lista de três pessoas a serem apresentadas ao presidente da República para escolha do presidente do Tribunal Supremo. Como é público, a escolha de João Lourenço recaiu noutra alternativa, a de Joel Leonardo, e desde então as relações entre a juíza e Leonardo não têm sido fáceis. O certo é que Joaquina do Nascimento viu interrompida a sua autorização de permanência em Lisboa, quando continua a ser das juízas mais produtivas do colectivo do Supremo.

Quer esta iniciativa de impedir que Joaquina do Nascimento termine o doutoramento, quer a recente notificação de acusação disciplinar enviada pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial à juíza conselheira Anabela Vidinhas (cujo teor desconhecemos), que se segue à demissão provisória do juiz conselheiro Agostinho Santos, indicarão que estamos perante uma purga judicial inconstitucional, aparentemente, levada a cabo pelo presidente do Tribunal Supremo, a qual coloca em causa a independência e inamovibilidade dos juízes. Algo está podre no reino do Tribunal Supremo, como diria William Shakespeare (“Something is rotten in the state of Denmark”).

O curioso desta alegada purga é que não se trata de uma “guerra” entre o partido do governo e o partido da oposição, mas de uma “guerra” interna entre várias facções ligadas ao partido do governo. Deixemos, porém, este ângulo de análise para outra ocasião.

Retornando à “excursão” do Supremo, apurámos entretanto dados mais concretos, que aqui publicamos por esclarecerem o comunicado do Tribunal Supremo e serem, por isso, de interesse público.

Não está prevista nenhuma viagem de todos os juízes conselheiros a Lisboa, Estrasburgo e Haia a partir de 17 de Janeiro. O que há e foi aprovado são deslocações em dois grupos separados a Lisboa, e só a Lisboa.

Os juízes conselheiros e os secretários judiciais das câmaras do cível, contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro e do trabalho deslocar-se-ão na primeira quinzena de Fevereiro a Lisboa (3 a 17 de Fevereiro). Os juízes conselheiros e o secretário judicial da câmara criminal irão também na primeira quinzena de Fevereiro de 2023 (de 3 a 17 de Fevereiro, presume-se que em momentos distintos do primeiro grupo, mas não é certo) e na segunda quinzena de Março de 2022 (de 3 a 17 de Março, o que é estranho, pois já entram pelo período de normal funcionamento do Tribunal em Angola).

Possivelmente, esta excursão tenta imitar um projecto dos anos 1990, sendo presidente do tribunal João Felizardo Movimba. Na altura promoveu-se uma viagem de formação, a ter lugar no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), a escola dos juízes em Lisboa, sob a égide de um programa de reforma da justiça apoiado pelo Banco Mundial. Essa formação fez-se em dois grupos e em duas fases, para não prejudicar os trabalhos do tribunal.

Desta feita, não se conhece qualquer formação no CEJ e o programa da troca de experiências envolve o seguinte:

  1. tramitação processual (desde o princípio até ao termo);
  2. programação/organização das sessões das câmaras e do plenário;
  3. modelos de tabelas;
  4. realização das sessões de julgamento das câmaras e plenário;
  5. elaboração dos projectos de acórdão;
  6. número (limite) de processos a inscrever por conselheiro por sessão;
  7. publicação dos acórdãos;
  8. outras práticas processuais de interesse comum.

Este programa é tão importante quanto é inadequado receber formação sobre ele em Portugal. E isto por duas razões, uma prática e outra estruturante.

Em termos práticos, Portugal não tem sido capaz de se tornar um exemplo em termos de tramitação processual, organização do procedimento judicial e elaboração de acórdãos.

Comecemos pelo fim. Os acórdãos em Portugal tendem a ser demasiado longos e pejados de copy-paste. Não raro, ultrapassam as 1000 (mil) páginas, que ninguém consegue ler, nem os arguidos para se defenderem, nem os juízes de recurso para bem decidirem. Na verdade, este hábito de escrever longuíssimos acórdãos ilegíveis configura uma verdadeira denegação de justiça. Muito melhor seria procurar jurisdições com capacidade de síntese e acórdãos claros, sem copy-paste. Na tramitação processual, o panorama não é melhor. Os processos importantes tendem a prolongar-se demasiado no tempo, nunca se fazendo verdadeira justiça.

Ora, estando Angola já a sofrer do mesmo mal (basta lembrar o tempo de demora de um eventual processo contra Isabel dos Santos ou o número de recursos importantes por decidir no Tribunal Supremo), parece de uma certa burrice ir aprender com quem faz pior.

Em termos estruturantes, há que abandonar em definitivo o neocolonialismo vigente no direito angolano, onde parece que a independência não se verificou. É tempo de abraçar outras experiências jurídicas. Olhe-se para o Botswana, para a África do Sul ou para a Namíbia e adapte-se o direito angolano à realidade angolana, em vez de se continuar a tentar imitar Portugal.

Portugal tem muitos aspectos positivos e interessantes, mas, neste momento, o seu direito e sistema judiciário não é um deles. É um sistema que também não se libertou de tiques inquisidores, estatistas e burocráticos que remontam a tempos imemoriais e não se tem conseguido reformar. O direito não é prático, a lei é confusa e os tribunais são lentos.

Um país nunca será verdadeiramente independente se o seu direito – a manifestação por excelência dos seus órgãos de soberania – não for uma criação original das suas gentes, costumes, cultura e história. Vale a pena referir o recente (2022) estudo realizado por Luemba & Oliveira, da Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil), que conclui:

“O Direito europeu [português], que tem marcado a vida angolana e o ensino de Direito em Angola, deveria ter merecido, da parte dos angolanos, um maior escrutínio, por conta da sua dimensão e revestimento colonialista. (…) O escrutínio que deveria ter merecido o Direito em questão teria, como propósito, a reinvenção do mesmo Direito, uma reinvenção que se daria a partir da interacção dialógica desse legado português – europeu/ocidental – com os aspectos do Direito Costumeiro Angolano. O diálogo a que estamos nos referindo teria como foco e estratégia a priorização dos aspectos do Direito Costumeiro angolano, isto por conta do respeito devido à soberania cultural do povo angolano. De facto, uma solução como essa – guiada nesses moldes – faria jus à máxima angolana, bastante conhecida entre os cidadãos: ‘primeiro, os angolanos; segundo, os angolanos; terceiro, os angolanos’ […].”

No fundo, é isto que de pior a “excursão do Supremo” representa: uma viagem ao passado colonialista, sem futuro.

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