Revisão Constitucional e Terceiro Mandato Presidencial

Nos últimos dias, tem-se discutido uma eventual revisão constitucional e a possibilidade de um terceiro mandato presidencial. Na realidade, as duas questões não têm de andar ligadas, mas na opinião pública – ou melhor, na opinião publicada – parece fazer-se essa associação.

Neste artigo procedemos a um exercício especulativo sobre a matemática da eventual revisão constitucional e as possibilidades reais de um terceiro mandato de João Lourenço, com e sem revisão constitucional.

A Assembleia Nacional conta com 220 deputados. De acordo com a Constituição (CRA), artigo 169.º, n.º 1, os projectos de Lei de Revisão Constitucional e as propostas de referendo são aprovados por maioria qualificada de dois terços dos deputados em efectividade de funções.

O número mágico de votos necessários para a revisão é portanto de 147 deputados. Se obtiver o voto positivo de 147 deputados, a revisão constitucional fica aprovada.

O MPLA tem 124 deputados, faltando-lhe 23 para os dois terços. Se, por hipótese, adicionássemos os 6 deputados dos pequenos partidos, a revisão constitucional ainda precisaria do apoio de mais 18 deputados eleitos pelas listas da UNITA. Parece difícil, mas não é impossível, uma vez que, segundo a maioria dos analistas políticos, existe um grupo de cerca de 30 deputados eleitos pela UNITA que não são filiados no partido, tendo sido eleitos no âmbito daquilo que se convencionou chamar FPU, um acordo político informal entre a UNITA e outras entidades.

Portanto, um primeiro cenário de viabilização da revisão constitucional poderá consistir em juntar os votos do MPLA, dos pequenos partidos e de alguns deputados “independentes” das listas da UNITA.

O segundo cenário possível, mais óbvio, derivaria de um compromisso oficial entre o MPLA e a UNITA. Neste caso, a questão dos dois terços estaria naturalmente resolvida. O problema, neste caso, residiria na elaboração e no conteúdo do acordo parlamentar para a revisão.

É, no entanto, vislumbrável uma troca de interesses. De um lado, o MPLA concordaria com uma eleição directa, separada e diversa do presidente da República; do outro lado, a UNITA, com vista a esse fim, aceitaria que a contagem de mandatos presidenciais recomeçasse do zero.

Antes de aprofundar este tema, convém verificar se a eleição do presidente para um terceiro mandato está definitivamente afastada na presente redacção da CRA.

A resposta é simples: em termos formais, a possibilidade de reeleição de um presidente da República para um terceiro mandato está expressamente proibida no artigo 110.º, n.º 2 b), que determina que são inelegíveis para o cargo de presidente da República os antigos presidentes da República que tenham exercido dois mandatos. Curiosamente, a CRA nem sequer restringe esta proibição a mandatos consecutivos. É taxativamente restritiva.

Vislumbramos, e com dúvidas, apenas uma hipótese de recandidatura do actual presidente João Lourenço: uma candidatura às próximas eleições como vice-presidente, assumindo a posteriori o cargo de presidente por vacatura posterior.

Por exemplo, se X é actualmente presidente da República em segundo mandato, pode ser candidato a vice-presidente na eleição seguinte e assumir a Presidência se este cargo vagar. Curiosamente, o artigo 132.º, n.º 1 da CRA estabelece que em “caso de vacatura do cargo de Presidente da República eleito, as funções são assumidas pelo vice-presidente, até ao fim do mandato, com a plenitude dos poderes, não sendo este período considerado como cumprimento do mandato presidencial, para nenhum efeito”.

Por aqui se vê que X poderia assumir a Presidência de facto, sendo que esse exercício não seria considerado como cumprimento de mandato presidencial em circunstância alguma. Consequentemente, a regra do limite de dois mandatos ficaria salvaguardada.

Para efeitos de contagem, um mandato presidencial assumido a partir do cargo de vice-presidente não é considerado. Poder-se-ia, nesta especulação jurídica, alegar-se que um presidente com dois mandatos não se pode candidatar de seguida a vice-presidente. Contudo, essa proibição não está expressa na CRA, apenas se podendo fazer uma aplicação adaptada por força do artigo 131.º n.º 4 das inelegibilidades do artigo 110.º, remetendo para interpretação a adaptação concreta dessas inelegibilidades. A isto acresce que a CRA, como se viu, não considera a assunção de funções da Presidência por um vice-presidente como um mandato, que não designa como eleição, mas como “assunção de funções.”

Se o texto constitucional parece permitir este tipo de jogo, a verdade é que se trata de uma solução demasiado rebuscada e de difícil concretização política. Geralmente, na história, com excepção da dupla Putin-Medvedev, este tipo de arranjos resulta mal, e seria difícil convencer a população a votar num esquema assim, pelo que se duvida da sua viabilidade.

A verdade é que, se alguém pretende rever a CRA de modo a diluir os limites dos mandatos presidenciais, a solução simples e linear passa por um acordo institucional entre MPLA e UNITA. Há outras soluções, como se referiu, mas só esta garantiria a estabilidade sociológica de procedimentos.

Como anotado acima, reformular a eleição presidencial, tornando-a uma eleição directa e independente da eleição para a Assembleia Nacional, implicaria um novo momento zero para os mandatos presidenciais, viabilizando a sua renovação por mais duas vezes. Contudo, seria aconselhável que isso constasse expressamente numa norma transitória da revisão constitucional.

A este propósito, merece ser recordado o Anteprojecto de Constituição da República de Angola, aprovado pela Comissão Constitucional em 2004, a primeira experiência colectiva de redacção constitucional após o final da guerra civil (2002). No artigo 148.º desse anteprojecto, ficou definido que o presidente da República seria eleito por sufrágio livre, directo e secreto, sendo declarada como vencedora a pessoa que obtivesse mais de metade dos votos validamente expressos, não contando o votos em branco. Assim, o primeiro impulso constitucional pós-guerra assumiu as eleições presidenciais directas como um facto adquirido. Só depois, em 2010, se veio inverter esse consenso, por motivos particulares por todos conhecidos.

Deste modo, compete aos estados-maiores dos partidos reflectirem sobre as vantagens e os riscos de inscrever uma eleição directa do presidente da República em troca do reinício da contagem de mandatos.

Por parte da UNITA, uma revisão constitucional deste tipo permitiria alcançar o seu objectivo de concorrer em eleições presidenciais directas e independente, mas acarretaria o risco de ver o actual presidente da República ser eleito para um terceiro e eventualmente até um quarto mandato, podendo manter-se no poder até 2037.

Naquilo que diz respeito ao MPLA, permitiria alcançar o desiderato de uma recandidatura, mas obrigaria a ceder na questão da separação das eleições. Só cada um sabe os reais benefícios e riscos de uma revisão constitucional realizada por mútuo acordo; da nossa parte, limitamo-nos a estudar cenários para uma discussão pública mais informada.

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