Prostituição e Supremo sem Pés nem Cabeça

No passado dia 7 de Novembro, o brigadeiro Joel Leonardo, juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo, aplicou a medida disciplinar de demissão a Domingos Fernando Feca, assessor desse tribunal e presidente da respectiva comissão instaladora do sindicato dos funcionários.

A aplicação desta pena máxima a nível disciplinar, que penaliza como nenhuma outra a vida profissional de uma pessoa, foi justificada com publicações no Facebook ocorridas entre 26 de Agosto e 15 de Setembro deste ano. Eis o teor dessas publicações:

“Quando o poder político leva para a cama o poder judicial o resultado é este: aberração e excremento jurídico. Quando o poder político paga para se envolver com o jurídico, isto é o quê mesmo…: prostituição.”

“O maior perigo no poder judicial/judiciário não são os conflitos a dirimir, mas os infiltrados sob o disfarce de Juízes e Procuradores.”

“Assalto ao poder, grande filme, só não sabia que teríamos de sair da ficção para a vida real e com realização em Angola. A realidade é difícil… Os filmes são proféticos, a profecia do filme a realizar-se em Angola.”

Foi apenas e só devido a estes escritos que o presidente do Tribunal Supremo decretou a demissão do seu autor, o funcionário Fernando Feca. Por alguma razão, a autoridade máxima do tribunal sentiu-se atingida pelas afirmações.

Contudo, se repararmos, retirando as vírgulas mal colocadas, o texto facebookiano de Feca não contém nada de manifestamente ofensivo, muito menos qualquer imputação directa e explícita ao Tribunal Supremo.

Trata-se, sobretudo, de um conjunto de considerações óbvias sobre o que não deve acontecer nas relações entre os poderes político e judicial e de especulações genéricas sobre o mesmo tema. Não existe concretização de factos, difamação pessoal, calúnia específica ou qualquer comprometimento de figuras específicas. Em rigor, qualquer pessoa poderia concordar com as afirmações.

Isto quer dizer que há uma reacção excessiva e desproporcionada por parte do presidente do Tribunal Supremo em relação aos escritos que Fernando Feca publicou no Facebook. E esse é um limite constitucional que tem de estar sempre presente na aplicação de qualquer sanção: a proporcionalidade. Não tem sentido demitir uma pessoa por ter escrito – e foi só esse o argumento, nada mais consta da decisão – aquelas expressões no Facebook. Poderia eventualmente ter sido feita uma admoestação ou algo semelhante; a demissão, que é a mais elevada sanção possível, não tem justificação.

Não havendo proporcionalidade nesta decisão, ela é ilegal – logo, deve ser revogada.

O que é a proporcionalidade na lei? É um princípio central no direito que estabelece que a legalidade de uma acção deve ser determinada respeitando o equilíbrio entre o objectivo e os meios e métodos utilizados, bem como as consequências da acção. Tal significa que, quando se aplica uma sanção, não se pode ter em conta as emoções ou os “carapuços que se enfiam na cabeça”, mas sim as medidas que são necessárias para evitar um mal, sem com isso perturbar os direitos fundamentais essenciais.

Tome-se o exemplo tradicional da balança da justiça: de um lado, está a eventual ofensa; do outro, os direitos fundamentais, neste caso, o direito à profissão e à dignidade da pessoa humana, bem como a liberdade de expressão. A demissão só se justificaria numa situação de gravíssima ofensa directa e imediata os juízes do Tribunal Supremo ou às instituições, o que não acontece com as considerações especulativas e sem destinatário óbvio emitidas por Fernando Feca.

Há uma clara sensibilidade desajustada no Tribunal Supremo, a qual deve ser alvo da maior atenção por parte dos vários poderes que garantem os equilíbrios constitucionais, designadamente o Presidente da República e o Tribunal Constitucional.

Um dia foi a absurda e ilegal suspensão do juiz conselheiro Agostinho Santos e da sua secretária, sendo que a suspensão desta última – a quem foi proibida a entrada nas instalações do tribunal – nem se consegue perceber, de tão bizarra que é. Agora, é a demissão de Fernando Feca, prestigiado e activo funcionário do tribunal.

Obviamente, o problema não está nos alvos destes processos, mas sim na própria existência dos processos. A justiça é harmonia e equilíbrio; quando se transforma em perseguição e desgaste, não é justiça, é brutalidade, força descontrolada ao serviço de interesses não fiscalizados.

Neste momento, temos um Tribunal Supremo com uma imensidão de processos em atraso – razão pela qual se viu na necessidade de aumentar o número de juízes – mas cujos juízes, os mesmos que não despacham processos, se dispõem a ler o Facebook como vizinhas zongolas. E, mais do que isso, nestes processos de perseguição interna estão a criar uma nova forma de censura, agora denominada “dever de urbanidade”. O dever de urbanidade é o dever de ser educado, não é o dever de estar calado perante as injustiças ou de não comentar actos ilegais ou inadequados. O dever de justiça sobrepõe-se a qualquer dever de urbanidade. Não confundamos conceitos.

Talvez fosse melhor – dirão alguma línguas mais afiadas – que os interlocutores judiciários deixassem de se comportar como se estivessem num aldeamento de matumbos, e só depois viessem falar do dever de urbanidade. Primeiro, há que dignificar a justiça, acabar com as histórias de compadrio, com os negócios imobiliários e outros. Então sim, o dever de urbanidade será exigível. Até lá, não passa de um expediente para calar vozes críticas do sistema.

A história da justiça em Angola não é feliz. Tem oscilado entre a inexistência e a submissão ao poder político autoritário. Esperava-se que um novo tempo tivesse aberto as janelas da justiça à moderação e à protecção dos direitos fundamentais. Em vez disso, temos uma situação que se torna quotidianamente insustentável, baseada em perseguições disciplinares, desrespeito das formalidades processuais e acusações de clientelismo pelo meio.

Começa-se a falar na substituição do Procurador-geral da República em Dezembro, no final do seu mandato. Esperemos que não venha a revelar-se uma mera troca de cadeiras e que em breve haja uma intervenção profunda e significativa ao nível da justiça.

Por vezes, o ideal é recomeçar. Como escreveu o poeta Miguel Torga: “Recomeça… se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade.”

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