Nova Lei da Amnistia: Resultados Práticos

Em alguns aspectos, Angola é um país feliz. Com alguma regularidade, os seus órgãos de soberania promovem uma lei da amnistia. Não vale a pena, para justificar tais leis, falar das velhas tradições romanas de amnistia, e muito menos do perdão na cultura tradicional africana, ou de como esta constituiu a argamassa da nova África do Sul. A amnistia é uma forma de encontro de uma sociedade com todos os seus entes, privilegiando uma cultura de consenso e integração e, nessa medida, deve ser vista de forma positiva.

Contudo, é evidente que no âmbito do chamado combate à corrupção em Angola, do ponto de vista político e da simbologia, uma nova lei da amnistia levanta algumas dúvidas ou questões. Desde logo, é difícil de a encarar à luz das recentes declarações de um juiz do Tribunal Supremo, que, num exercício de extrema fustigação judicial, considerou inadmissível qualquer contemporização com os delapidadores do erário público. Bem melhor teria feito o colendo conselheiro se tivesse contido o seu espasmo escrito, em vez disso aguardando por esta iniciativa legislativa.

A proposta apresentada pelo ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Marcy Lopes (na foto), em nome do executivo, que terá de ser aprovada pela Assembleia Nacional, amnistia todos os crimes comuns com penas de prisão até dez anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros, no período entre 12 de Novembro de 2015 e 11 de Novembro de 2022 (artigo 1.º n.º 1 da proposta de Lei). Também, se refere aos crimes militares (artigo 1.º, n.º 2), mas não vamos entrar nessa matéria.

Além disso, a proposta de lei prevê um perdão genérico a conceder aos agentes dos crimes que não tenham sido abrangidos pela amnistia, que é de um quarto da pena aplicada a estes cidadãos (artigo 2.º).

Portanto, temos uma amnistia de crimes e um perdão de penas. Isto quer dizer que há crimes que não serão julgados e haverá penas que não serão cumpridas na totalidade. Por exemplo, uma pessoa que tenha cometido um crime de falsificação em 2017 não será julgada, enquanto outra que tenha sido condenada a oito anos de prisão verá essa condenação baixar para seis anos.

Não existem excepções em relação ao perdão de penas, mas há uma imensidão de excepções à amnistia de crimes (artigo 3.º). Ficam de fora, entre muitos outros tipos criminais, os crimes de peculato, de corrupção e de branqueamento de capitais, e também os crimes patrimoniais cujos danos não tenham sido reparados.

Curiosamente, também não são amnistiados crimes contra a segurança do Estado, que não admitem liberdade condicional nos termos da lei, crimes de incitação à desordem pública, à sublevação popular e ao golpe de Estado, o que demonstra que a agitação pré-eleitoral não passou despercebida aos decisores políticos.

Uma outra provisão que também merece ênfase é que os bens que tenham sido apreendidos nos processos-crime agora amnistiados serão declarados perdidos a favor do Estado (artigo 5.º).

Nesta formulação, ficam vários temas esclarecidos, mas há outros que oferecem dúvidas. Certo é que os crimes de peculato, corrupção e branqueamento de capitais não são amnistiados. Mas não é óbvio o que acontece aos outros crimes de natureza económico-financeira. A intervenção do ministro Lopes e a sua proposta de lei referem que os crimes patrimoniais não serão amnistiados se não tiver havido ressarcimento, isto é, se o dinheiro não tiver sido devolvido; porém, resta saber exactamente o que se pretende dizer com “crimes patrimoniais”. Muitos crimes afectam o património público ou privado, mas não têm a designação de crime patrimonial que habitualmente se aplica ao furto, roubo, abuso de confiança e burla (aliás, vejam-se os artigos 391.º a 429.º do presente Código Penal angolano). Por sua vez, um crime patrimonial distingue-se de um crime contra a propriedade ou contra direitos patrimoniais e ainda mais de um crime económico-financeiro. Estas distinções são importantes para a análise prática que vamos fazer de seguida.

Em resumo, para efeitos da esfera económico-financeira, consideramos que, a ser aprovada a proposta de lei, não serão amnistiados os crimes de peculato, corrupção e branqueamento de capitais, bem como os crimes patrimoniais contidos nos artigos 391.º a 429.º do Código Penal, nos casos em que não tenha havido devolução dos montantes, mas só nesses. Também se considera que haverá perdão de um quarto da pena de prisão aplicada.

Apresentamos em seguida uma possível análise do efeito prático da lei da amnistia nos casos de “corrupção” mais relevantes em curso. Note-se que estamos a trabalhar com base em fontes indirectas, comunicados oficiais, notícias de jornal, pelo que não se trata aqui de uma análise científica, mas sim de uma aproximação ao tema.

Augusto Tomás foi condenado a sete anos e um mês de prisão, pelos crimes de peculato, violação das normas de execução do plano de orçamento sob forma continuada, abuso de poder sob forma continuada e participação económica.

Com a nova lei, terá um perdão de 1,77 anos de pena de prisão, portanto, passará para uma pena de 5,2 anos. Além disso, cairá o crime de abuso de poder e violação das normas de execução do plano e orçamento, o que quer dizer que provavelmente a sua pena ficará reduzida ao tempo que já cumpriu, devendo ser libertado.

O caso de Augusto Tomás já transitou em julgado e ele cumpre pena. Outros há que ainda não transitaram em julgado.

José Filomeno dos Santos havia sido condenado a cinco anos por crimes de burla defraudação, peculato e tráfico de influências. A pena reduz-se em 1,25 anos, logo, passa para três anos e nove meses. O crime de burla é amnistiado porque houve ressarcimento e o tráfico de influências não é crime patrimonial. Resta o peculato. Possivelmente, haverá lugar a uma pena suspensa inferior a três anos.

Valter Filipe foi condenado a oito anos de prisão maior pelos crimes de peculato na forma continuada e de burla por defraudação. São retirados dois anos (pena passa a seis anos) e cai a burla por defraudação. Restarão entre três e cinco anos de pena prisão.

Carlos São Vicente tem uma condenação provisória de nove anos pelos crimes de peculato, branqueamento de capitais e fraude fiscal. Verá a pena reduzida em dois anos e três meses e possivelmente cairá o crime de fraude fiscal. Talvez fique com cerca de seis anos de pena.

Vejamos agora o resultado da proposta de lei nas acusações mais famosas do Verão passado.

O general Kopelipa foi acusado de peculato, burla, falsificação de documentos, associação criminosa, tráfico de influências, abuso de poder e branqueamento de capitais. Acredita-se que os crimes de falsificação, associação criminosa, tráfico de influências e abuso de poder serão amnistiados. Restará apenas o crime de burla, caso não tenha havido devolução de montantes e branqueamento de capitais.

Algo de semelhante acontecerá ao general Dino. Saem os crimes de falsificação de documentos, associação criminosa e tráfico de influências.

Repete-se que esta é uma análise prática meramente aproximativa, apontando possibilidades, mas não certezas. Falta falar de dois casos especiais.

Em primeiro lugar, Manuel Vicente. Em Portugal, Vicente foi acusado de corrupção activa. Os factos são anteriores a esta Lei da Amnistia e provavelmente já foram amnistiados pela anterior Lei da Amnistia (2016). Novamente, o nome de Vicente surgiu na recente acusação aos generais Kopelipa e Dino. Ora, os crimes destes dois generais seriam amnistiados, pelo que, naturalmente, o mesmo aconteceria a Vicente. De algum modo, Vicente parece ser um super-amnistiado.

Finalmente, Isabel dos Santos. A filha do antigo presidente nunca chegou a ser acusada criminalmente, pelo que não se sabe como beneficiaria desta amnistia. Contudo, sabe-se o que perderia, uma vez que os bens apreendidos nos processos-crime, mesmo que amnistiados, seriam declarados perdidos a favor do Estado. Isabel dos Santos deveria ter sido acusada, levada a julgamento e condenada ou absolvida, perdendo o que deveria perder e ficando com o que devesse ficar. O ponto a que se chegou é que fica sem activos e não há processo-crime.

Se não for encarada e resolvida brevemente, no médio prazo esta questão vai virar-se contra o Estado angolano e a consolidação do Estado de Direito.

Note-se ainda o óbvio: todos os detentores de cargos políticos, judiciais e parlamentares durante este período (de 12 de Novembro de 2015 a 11 de Novembro de 2022) beneficiam da amnistia. Sobre o que isto significa para a sociedade não nos cabe a nós responder, mas sim a todos os membros activos da comunidade política. Existe uma história verídica de um ministro sandinista (guerrilheiros da Nicarágua que tomaram o poder pela força) que visitava uma prisão onde se encontrava um seu antigo torturador encarcerado. Este perguntou-lhe como iria ele exercer a sua vingança, ao que o sandinista respondeu: “Eu perdoo-te. Essa é a minha vingança.” Em Angola, a questão é mais difusa: quem deve perdoar a quem?

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