Mudança Necessária e Mudança Desnecessária

Em 2017, o Estado angolano estava edificado em torno da vontade de um homem e dos interesses privados de quem o rodeava. Obviamente, a mudança impunha-se, sob pena de o próprio Estado sucumbir e de o país se dissolver.

A partir dessa altura, tentou-se de várias maneiras trilhar um caminho de mudança. Contudo, chegados ao ano de 2022, generalizou-se e consensualizou-se o clamor pela alteração do estado de coisas. Isto significa que ainda não foram implementadas modificações suficientes. Há uma razão essencial para esta timidez: as estruturas do Estado montadas anteriormente não permitiram que a vontade de uma ou duas pessoas levasse avante a mudança.

É por isso que só agora a sociedade angolana começa a convergir sobre a necessidade de uma mudança efectiva e profunda do sistema político e de governação do país. Trata-se da refundação do Estado.

Logo, se todos desejam a mudança, já não se coloca o problema da divisão político-partidária sobre este tema. A questão que se coloca é: que mudança?

Ao nível das massas, as principais razões para se pedir uma mudança têm origem na fome e no desemprego. Nas classes mais altas, há também vontade de mudança, mas mais na direcção do passado – ou seja, de um retorno aos privilégios e à impunidade.

Já nas estruturas partidárias, a vontade de mudança parece assentar mais na substituição de uns por outros. Os outros acham que é a vez deles, e eles acham que ainda não é a vez dos outros, mas apenas de alguns entre eles.

Por sua vez, as igrejas que congregam milhares de fiéis/eleitores também vêem com pragmatismo a necessidade de mudança como a melhor opção para o aumento dos dízimos e do sucesso das suas demandas junto de quem governa.

Então, quais são realmente as mudanças por que os angolanos anseiam? A mudança de partidos no governo, a mudança da situação socioeconómica, a mudança para ficar tudo na mesma, a mudança para piorar ou ainda a mudança de tudo?

Estas são as questões que devem ocupar os debates dos cidadãos no único momento que têm, de cinco em cinco anos, durante o qual os políticos se sujeitam a ouvi-los e se lembram de que dependem da vontade do povo.

As promessas eleitorais partidárias e as figuras políticas – por mais emoções, fanatismos ou hostilidade que provoquem – devem sempre ser avaliadas em função das preocupações de cada cidadão.

Por falta de uma cultura de discussão pública de agendas políticas e de ideias sobre Angola e os angolanos, a tendência genérica assenta na elevação dos políticos ao estatuto de messias; infelizmente, aquele em quem inicialmente se deposita grande fé muitas vezes torna-se um judas. Apesar da similitude entre política e religião, há uma diferença fundamental que os angolanos devem ter em conta. Na religião, Deus é soberano; na política, é o povo que é soberano. Logo, na religião o fiel usa a sua fé, em obediência aos mandamentos de Deus ou não, para que a sua vida pessoal e profissional corra o melhor possível. Na política, o cidadão tem de contribuir para a organização do Estado, antes de mais, para que goze da protecção desse mesmo Estado e tenha garantias seguras do usufruto dos seus direitos.

Os políticos não fazem milagres. É preciso saber como exigir dos candidatos o tipo de liderança que permita a cada cidadão dar o seu contributo para a organização do Estado, para que este a todos sirva, como uma verdadeira mãe a todos os filhos.

Para se chegar à liderança que pretendemos, a mudança tem de começar no modo de escolha de cada um, isto é, no sistema eleitoral. O presente sistema eleitoral angolano é demasiado inalcançável e impessoal para promover lideranças consonantes com os interesses da população: é um sistema de lista única e fechada, que cria uma espécie de corporativismo político, pois semeia as relações pessoais, os interesses familiares e as conexões. É importante que o povo tenha uma palavra na escolha do seu autarca no poder local, do seu deputado na Assembleia e do seu presidente da República, sabendo quem responsabilizar, a quem exigir e quem premiar.

Nessa medida, a mudança deve começar pelo sistema eleitoral, tornando-o pessoal, directo e aberto. Esta é a única via para a responsabilização e participação activa do cidadão na política.

Para se chegar a este ponto, há que aproveitar o actual período eleitoral para dar início à discussão real e efectiva sobre mudanças constitucionais, visando mesmo a realização de uma revisão da Constituição, já que a próxima só poderá ocorrer em 2026. Esta revisão constitucional deverá consagrar eleições directas, quer para os deputados, para que cada pessoa conheça quem está a eleger; quer para o presidente da República, eleito por voto directo. O escrutínio de 2032 deverá ser já com este modelo de eleição directa. E é esta Agenda 2032 que devemos iniciar hoje.

As eleições directas e autárquicas permitirão acabar com o modelo político segundo o qual o vencedor das eleições leva tudo e o perdedor bebe água. As autarquias podem permitir que os perdedores, em zonas onde disponham de maior apoio eleitoral, governem essas localidades; o país só tem a ganhar com experiências variadas de administração local e nacional.

A primeira acção e responsabilização, no entanto, deve ser de cada cidadão. É o cidadão, ou seja, cada um de nós, que deve começar o seu movimento próprio e pessoal, com vista à mudança no sistema eleitoral. Não devemos ficar à espera. A acção está nas mãos de todos, e só assim se viverá em democracia.

No caminho que se segue a esta mudança de atitude, os valores de solidariedade e confiança levarão ao surgimento de organizações voluntárias e cívicas que se dediquem a congregar e potenciar os esforços de cada cidadão, tornando-os esforços unívocos e direccionados, fruto de um conjunto organizado de acções.

Contudo, não deve esquecer-se o que a História nos ensina: em 1975 (guerra civil), 1977 (27 de Maio) e 1992 (retorno à guerra), pelo menos, as oportunidades de mudança foram rapidamente subjugadas pela violência, e os interesses pessoais e as emoções sobrepuseram-se a tudo; o país viu-se então reduzido a pouco mais do que montes de cadáveres e cinzas.

Estamos novamente num ponto de viragem e o perigo da extrema violência espreita; as emoções falam de novo mais alto; os interesses inconfessos promovem a agitação. A mudança desejada tem de ser pacífica, pensada e negociada por todos. A última palavra cabe ao povo soberano.

© Foto de Paul Weinberg

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