Ao Pó Tornarás

“És pó e ao pó tornarás” (Gen 3:19). O óbvio tem de ser relembrado demasiadas vezes e uma delas é agora, perante os episódios que se desenrolam acerca dos últimos dias de José Eduardo dos Santos (JES).

A questão fundamental não é a explosiva disputa familiar, que não surpreende. Tal como na sua vida política, em privado JES foi equívoco e ambíguo, alimentando muitos, promovendo a competição e a delação mútua. Dividia sempre, para melhor reinar. No final, só poderia resultar uma enorme confusão para resolver. Assim foi na vida pública, assim será na vida privada.

O importante é o simbolismo dos acontecimentos à sua volta, que espelham uma espécie de política tétrica fomentada por JES desde os funestos acontecimentos de 1977, em que os cadáveres se tornaram objectos políticos (ou melhor, não-objectos), deixando de ser sujeitos.

Durante décadas, os cadáveres dos derrotados foram sequestrados pelo poder político angolano. Nito Alves, amigo próximo de JES, viu o seu cadáver raptado até aos dias de hoje. Os dirigentes da UNITA, mortos em 1992, também não tiveram direito a enterros nem cadáveres até hoje, o mesmo acontecendo com Jonas Savimbi. Diga-se, em abono da verdade, que apenas João Lourenço abandonou esta política do sequestro do cadáver do inimigo, entregando, dentro do possível, a cada um o que é seu.

O sequestro do cadáver é a mais profunda forma de desumanização do Outro, do inimigo. O inimigo nem direito ao corpo morto tem, não existe.

Este apagamento do cadáver foi uma política de Estado implementada por JES. Nessa medida, não nos deixemos surpreender pela ironia da vida ou da história: a disputa do corpo moribundo de JES é agora notícia de repercussão mediática, mais internacional do que nacional.

A política do cadáver atinge em força o seu criador. E para quê? Na realidade, para nada. Dos Santos não elevou a humanidade dos angolanos. Rebaixou-a. Degradou-a ao ponto de a morte ser um espectáculo banal no país.

Olhemos para a história e vejamos o extraordinário exemplo do pai da Turquia moderna, o general Kemal Ataturk, depois da famosa batalha de Galipoli, em 1915, que causou meio milhão de baixas, entre feridos e mortos, aos soldados turcos e aos seus então inimigos e invasores, os aliados liderados pela Grã-Bretanha.

Ataturk honrou todos os soldados tombados no campo de batalha, incluindo os seus inimigos, de forma tão galante e humana que até hoje é lembrado por isso: “Vocês, mães que enviaram os filhos de países tão distantes, limpem as vossas lágrimas. Os vossos filhos descansam agora entre nós e em paz. Após terem perdido as suas vidas nesta terra, tornaram-se nossos filhos também.”

Já em Angola, foram 27 anos de guerra civil, de matanças entre irmãos desavindos pela cegueira política dos seus líderes e pela sua indiferença para com o sofrimento dos compatriotas.

A herança política de JES é a da pilhagem e do sequestro de um país, vergado aos interesses de uma oligarquia por ele criada. Levará bastante tempo para Angola se libertar dessa pesada herança de corrupção e destruição moral de toda uma sociedade, dos angolanos em geral.

Aqueles que se sentem órfãos pelo iminente desaparecimento de JES não são o povo sofredor nem os trabalhadores, camponeses e lutadores por Angola. São os beneficiários da pilhagem, da destruição da dignidade e do futuro dos angolanos comuns.

Não se tomem as estratégias de massificação das redes sociais como realidades, nem se tomem as amplas notícias publicadas, sobretudo a nível internacional, como reflexo de um interesse popular. Tudo isso resulta sobretudo de manipulações e de procura de sensacionalismo.

No meio de tudo, é espantoso que quem está a assumir todos os custos com a permanência de JES em Barcelona seja o Estado. Para confirmar as regras do passado, uma boa parte da família ex-presidencial volta a dispor dos fundos públicos como se fossem seus. Os velhos hábitos não morrem. A confusão entre público e privado continua a ser a norma no círculo íntimo de JES. Não aprenderam nada nestes cinco anos – só a fazerem-se de vítimas. E, não contentes, depois de estenderem as vicissitudes de um corpo carcomido na praça pública, vêm agora pedir privacidade. Sempre a mesma duplicidade.

O certo é que a herança política de JES – os aspectos pessoais não estão aqui em questão – não deixa saudades, mas apenas amarguras. Pelo menos entre 2002 e 2017 Dos Santos teve a oportunidade de fazer um país novo e próspero e em vez disso optou por criar uma suserania feudal de exploração de recursos naturais sem qualquer interesse pelo bem-estar da população. Criou, ao mesmo tempo, uma corte familiar cujas acções cada vez mais deixam perplexo um observador imparcial. Trasmudam-se de exploradores e opressores em vítimas com uma facilidade estonteante.

No final, só dá para lembrar aquela história do imperador chinês que queria ser imortal, procurou durante anos a receita da imortalidade, não conseguiu nada e morreu como qualquer outro. E o homem mais poderoso do mundo de então é hoje totalmente desconhecido, salvo para um punhado de estudiosos da China.

JES poderia ter deixado como herança um país próspero e orgulhoso. Deixou uma derrocada confusa em desagregação. Não há imortalidade que lhe advenha.

Temos, no entanto, de quebrar o ciclo de ódios, divisões, de desconfiança e de intrigas que levaram o país à destruição. Temos de traçar um novo caminho de humanização, de confiança e solidariedade entre os angolanos, quebrando os ciclos destrutivos do passado.

Aliás, outro legado funesto de JES é a desunião: o cultivo da intriga, da divisão, da permanente, embora disfarçada, guerrilha. Não houve sequer uma definição do bem- comum, muito menos a busca desse bem comum.

É tempo de modificar essa cultura. Onde há desunião, que venha a união; onde há ódio, que venha a concórdia. Nesse sentido, cabe ao Estado angolano promover, com honra e dignidade, o último adeus ao homem que marcou profundamente gerações de angolanos com os seus 38 anos de poder. Que esse momento sirva para os angolanos reflectirem sobre o tipo de liderança que merecem e porquê.

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