As Espantosas Novidades da Lei da Apropriação Pública

A modificação do artigo 37.º da Constituição (CRA) operada na recente revisão constitucional, bem como as actividades intensas do Serviço Nacional de Recuperação de Activos (Senra) tornavam imperativo que surgisse legislação que tratasse dos novos fenómenos de apropriação pública, designadamente as famosas entregas de bens e as apreensões, que têm estado a acontecer no âmbito do chamado combate à corrupção, muitas vezes sem se perceber o seu enquadramento constitucional e legal.

Agora, o enquadramento jurídico é claro: há o artigo 37.º da CRA, que estabelece os princípios da apropriação pública, e recentemente entrou em vigor a Lei n.º 13/22, de 25 de Maio, que desenvolve os vários regimes de apropriação pública (Lei da Apropriação Pública – LAP).

Não vamos aqui analisar a lei em detalhe, nem as formas de apropriação tradicionais, como a nacionalização (artigo 11.º e seguintes).

O que por ora nos interessa são as fórmulas inovadoras contidas nos artigos 20.º e 21.º da recém-aprovada Lei da Apropriação Pública. São estas fórmulas que tentam dar resposta às várias preocupações suscitadas por comentadores a propósito de apropriações de bens realizados pelo Senra, no âmbito do referido combate à corrupção.

A Entrega Voluntária de Bens (Artigo 21.º da LAP)

O artigo 20.º regula a entrega voluntária de bens. Esta figura – um pouco atípica, como é timbre no direito angolano – tem surgido bastante nos últimos anos.

Refira-se, a título de mero exemplo, que em Julho de 2019 se anunciava a entrega voluntária dos “terminais dos portos de Luanda e do Lobito, que estavam entregues à empresa Soportos – Transporte e Descarga, SA, pertencente ao ex-chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, general Manuel Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’, e família”. Esta entrega era realizada no âmbito de um possível processo de peculato.

Na altura não se percebia a base legal destas entregas, nem os seus efeitos para os eventuais processos-crime em curso. O novo artigo 20.º da Lei da Apropriação tenta resolver estas dúvidas, embora o faça de modo demasiado superficial e sem, na realidade, adiantar muito.

Estabelece esse artigo, sobre a entrega voluntária de bens, que no âmbito dos processos de recuperação de activos, e de outros similares, em que esteja em causa a prática de actos ilícitos lesivos do património público, os envolvidos podem proceder à entrega voluntária dos bens objecto do processo, sendo lavrada uma declaração certificada e autenticada nota­rialmente, sujeita a homologação judicial. Acrescenta o mesmo dispositivo que a entrega voluntária de bens deve ser declarada mediante o preenchimento de documento processual que a comprove.

A entrega voluntária de bens não extingue os procedimentos criminais ou de outra natureza relacionados com o bem objecto de entrega, mas funciona como circunstância atenuante nos termos da Lei Penal.

Este artigo 20.º não resolve a maior parte das dúvidas e deixa demasiado em aberto. Em primeiro lugar, não esclarece exactamente em que tipo de processos estas entregas devem acontecer nem, sobretudo, se podem acontecer sem existir processo algum. Dá ideia que não. Aparentemente, em primeiro lugar deve haver um processo formal e só nessa altura se verificará a entrega dos bens, não havendo lugar a nenhuma medida preemptiva.

Contudo, o principal problema da norma não é este – é a vacuidade das consequências da entrega de bens. Segundo a lei, a única consequência legal é tal entrega funcionar como atenuante penal, não terminando o processo-crime, nem trazendo nenhum outro benefício.

Como é sabido, a valorização das atenuantes penais é feita por um juiz, e não pelo Senra ou qualquer procurador, querendo isto dizer que a entrega pode ter pouco ou nenhum efeito e conduzir à maior das injustiças.

Imaginemos que o general K entrega bens, o processo segue e o juiz condena-o e retira apenas seis meses à pena, em virtude da entrega de bens. Porém, noutro o caso, o general D também entrega bens, e o juiz da causa, diferente, retira-lhe um ano de pena. Isto quer dizer que o arguido fica dependente da vontade de um juiz, que pode ser diferente em cada caso e criar situações de desigualdade e discriminação.

Aliás, se lermos com atenção os artigos 70.º e seguintes do Código Penal sobre a determinação das penas e circunstâncias atenuantes, facilmente verificamos que necessariamente a entrega voluntária de bens já seria uma atenuante.

Portanto, o que temos aqui é uma norma redundante que continua sem resolver nada e permite os maiores abusos em troca de nada.

Obviamente, esta entrega voluntária só teria sentido no âmbito de um processo de justiça negociada, como existe no Brasil e nos Estados Unidos. Infelizmente, o legislador angolano, ainda preso pelos atavismos da formação portuguesa, não consegue dar este salto fundamental para acelerar a luta contra a corrupção e criar ao mesmo tempo segurança jurídica.

Declaração Judicial de Transferência de Bens para o Estado (Artigo 21.º da LAP)

Muito diferente, e com possíveis efeitos radicais no combate à corrução, é a norma constante do artigo 21.º, epigrafado “Declaração judicial de transferência de bens para o Estado”.

Aí se prescreve que um juiz pode fazer uma declaração judicial de transferência de bens para o Estado, havendo comprovada urgência e a pedido do Ministério Público.

A comprovada urgência é definida como o caso em que o “bem a transferir [seja] susceptível de se deteriorar ou desvalorizar a curto prazo ou quando a sua não afectação à esfera jurídica pública seja susceptível de prejudicar gravemente o interesse nacional”. (artigo 21.º, n.º 4 da Lei da Apropriação Pública)

A declaração de transferência deve ser devidamente fundamentada, respeitar o princípio da proporcio­nalidade e tomada após audiência prévia do titular dos bens. Da declaração judicial de transferência de bens para o Estado cabe recurso, com efeito meramente devolutivo.

Efectuada a declaração judicial de transferência de bens para o Estado, este passa a dispor de plenos poderes sobre os mesmos.

O Estado apenas é obrigado a indemnizar, dentro de um prazo razoável, as pessoas cujos bens foram objecto de transferência quando se verifique a licitude dos actos de constitui­ção ou incremento de património privado.

Este procedimento – declaração de transferência – deve demorar somente 20 dias a ser decidido.

Aqui temos uma “bomba atómica” que, se for bem usada, pode apressar e resolver o combate à corrupção em pouco tempo; se mal usada, será fonte dos maiores abusos. O que se estranha é que um artigo com este impacto não tenha sido amplamente discutido na comunidade política e jurídica.

Vamos explicitar em termos simples o que este artigo estabelece.

A partir de agora, no âmbito de um processo-crime, mesmo na fase de instrução (sem haver sequer acusação e muito menos julgamento e trânsito em julgado), um juiz, a pedido do procurador, pode declarar imediatamente um bem perdido a favor do Estado. Não é como antes, em que havia um “congelamento” ou uma apreensão provisória.

Face a esta lei, em qualquer momento do processo, mesmo logo no início, podem ser confiscados bens com efeito imediato. O recurso que há tem efeito meramente devolutivo, ou seja, não suspende nada.

O efeito da declaração é direito e imediato.

Usemos outro exemplo para explicar. Como é sabido, no início de 2020 foram congelados diversos bens a Isabel dos Santos, que, contudo, continuam a pertencer-lhe até ao fim dos processos.

Actualmente, com esta lei, o Estado já pode ficar directamente com os bens de Isabel dos Santos, enquanto os processos seguem. Até podem demorar 20 anos, mas os bens já são realmente e para todos os efeitos propriedade do Estado.

Ao contrário do artigo 20.º, que não acrescenta nada, o artigo 21.º cria um instrumento poderosíssimo e acrescenta imenso. O protelamento dos processos e os recursos deixam de ser armas da defesa de qualquer arguido naquilo que diz respeito ao seu património. Uma pessoa pode ficar sem património sem ser condenada e sem trânsito em julgado.

Esta norma só se justifica pela magnitude inaceitável que a captura do Estado e a corrupção assumiram em Angola, e pela ineptidão que os tribunais comuns têm revelado no julgamento célere da maior parte dos casos de corrupção. Contudo, sendo justificável, deveria ter um mecanismo de controlo e fiscalização sistémica para evitar abusos de poder e injustiças flagrantes. Temos aqui uma revolução legal que passou muito despercebida. Esperemos que seja para benefício do bem-comum.

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