Estradas Esburacadas e Atraso de Angola

Nas últimas semanas, o troço da Estrada Nacional 230, que liga a cidade de Ndalatando a Malanje (174 quilómetros), tem vindo a degradar-se a um ritmo acelerado, com a multiplicação diária de buracos e alargamentos. Este troço junta-se, assim, ao pesadelo do trajecto entre Calomboloca (Luanda) e Ndalatando. O que foi em tempos a ilusão de uma pista e de um dos melhores troços de estrada em Angola é hoje mais uma imagem soluçante do país que avança e recua aos solavancos.

As estradas são vitais para o desenvolvimento do país.

A via Luanda-Malanje é uma das duas principais rotas comerciais e de turismo de Angola. Constitui a rodoviária de ligação do leste (região diamantífera) à capital. Quem fala dessa via, fala das estradas em todo o território, que espelham o atraso do país, a falácia da promoção do turismo e o grave problema do escoamento da produção agrícola de muitas zonas do país. É difícil aferir, para já, quantos quilómetros de estrada asfaltada se perderam, nos últimos anos, por má qualidade das obras, do asfalto e dos elementos de terraplanagem, assim como por falta de fiscalização efectiva e de manutenção. Malanje é a província que oferece mais atracções turísticas naturais num raio de cem quilómetros, destacando-se as Pedras Negras de Pungo-Andongo, cujo acesso é cada vez mais limitado devido ao péssimo estado da estrada; as Quedas de Kalandula (na foto principal), a Cascata de Musseleji e os Rápidos do Kwanza. Fala-se muito na promoção do turismo angolano, mas a verdade é que nem sequer se consegue assegurar a qualidade e manutenção da estrada para a província com o maior potencial turístico do país.

Cascata de Musseleji, uma das joias turísticas de Malanje

Um dos troços em referência, numa extensão de 68 quilómetros entre Lucala e Cacuso, foi reabilitado em 2019 pela empresa China Bengbu International Technology and Economic Cooperation (CBITEC), com um custo de 58 milhões de dólares. Três anos passados, esse troço está em degradação galopante, devido à má qualidade da obra. Os 68,7 quilómetros seguintes (entre Cacuso e Malanje), reabilitados pela Carmon Reestrutura, custaram 60 milhões de dólares e foram inaugurados também em 2019. Já requerem, igualmente, uma operação substancial de tapa buracos.

Estamos a falar de um investimento total de 118 milhões de dólares para 136 quilómetros de estrada cuja durabilidade não chega sequer a três anos.

Como acontece isto?

A EN 230 tem mais de 1100 quilómetros de extensão. Em 2020, o governo disponibilizou 630 milhões de dólares para a reabilitação de 630 quilómetros da referida estrada, no troço entre Malanje e Saurimo. Sem uma política efectiva de responsabilização criminal dos servidores públicos (e dos governantes em particular), dos empreiteiros e dos fiscais de obra pelo desperdício de tanto dinheiro com estradas de péssima qualidade, o cenário será sempre o mesmo.

Muito dinheiro, péssima qualidade

Todavia, é preciso reconhecer os esforços e investimentos feitos pelo governo nas vias de circulação rodoviária. Como nota o Banco Mundial, no período pós-guerra (2002-2009), Angola gastou uma média anual de 2,8 mil milhões de dólares na reabilitação de estradas. Esse valor baixou para uma média de 2,1 mil milhões de dólares nos dez anos seguintes.

Como é do conhecimento público, o problema de Angola nunca foi e não é a falta de dinheiro, mas a combinação da falta de ambição coerente sobre os projectos para o futuro, da incompetência crónica na execução e manutenção e do vício do saque do erário público. “Caso esses recursos tivessem sido gastos com eficiência, Angola teria construído três vezes mais quilómetros de estradas primárias e duplicado a extensão da rede rodoviária municipal”, assinala o estudo do Banco Mundial. Seria, então, uma adição de 25 795 quilómetros aos 8200 quilómetros reabilitados na altura.

O estudo do Banco Mundial destaca claramente a falta de qualidade das estradas e a disparatada discrepância entre os custos e a execução. Salienta, como exemplo, que entre 2008 e 2017 o governo gastou mais de 20 mil milhões de dólares em estradas, a um custo de 2,52 milhões por quilómetro asfaltado, de duas faixas de rodagem apenas. Um absurdo completo. No entanto, no mesmo período, o governo dedicou apenas uma média anual de 28 milhões de dólares à manutenção de estradas.

Com efeito, na lista de competitividade global de 2019, Angola está entre os dez últimos países em termos de qualidade da rede rodoviária, na posição 136 de 141 países.

A concentração imperial de poderes

A questão de fundo tem a ver com dois elementos. O primeiro diz respeito à falta de estratégicas coerentes e consequentes sobre as estradas. Como nota Cremildo Paca, no seu tratado sobre a Administração Pública e Poder Executivo de Angola, nunca foi implementado, no domínio das estradas, “um plano estratégico nacional sobre as grandes opções para políticas públicas”, que são artérias fundamentais para “materializar o desenvolvimento nacional”.

Nota-se como as estradas nacionais existentes mantêm o traçado colonial. Mesmo devidamente reparadas e mantidas, essas estradas já não atendem aos objectivos económicos e estratégicos do país, tendo em conta a explosão demográfica da população.

Desperdiçou-se tanto dinheiro. O país deveria ter criado e implementado um plano de construção de auto-estradas, que servissem as actuais e futuras aspirações de desenvolvimento da economia, da vida das pessoas e do país. Um país que nunca construiu uma única auto-estrada (para ligar as regiões do país) não pode propor-se a construir um metro de superfície em Luanda.

O segundo elemento tem a ver com a estrutura das finanças públicas, do modelo actual da administração local e da concentração imperial de poderes em Luanda, a capital da asfixia nacional. Trata-se, acima de tudo, da ausência de uma visão holística para o país, das dificuldades da política de finanças locais e, por conseguinte, dos entraves à descentralização de poder. A concentração do poder administrativo numa única cabeça central é uma das mais pesadas heranças do passado colonial autoritário.

O modelo de concentração administrativa já devia ter sido ultrapassada há muito, mas infelizmente foi acentuada pelo modelo soviético adoptado na liderança do país após a independência.

Desse modo, o governo central constrói mas abdica da conservação e manutenção das estradas nacionais, até estas apresentarem um nível absurdo de degradação, para então se proceder à construção de mais uma nova estrada, com mais novos contratos multimilionários. Os pequenos buracos têm de aguardar por vontades superiores e, de tão impacientes, acabam por se multiplicar. É aquilo a que governantes e assessores chamam clarividência: um processo de construção e destruição sucessiva.

Buracos na via, perigos de morte

Acontece que as estradas esburacadas são “minas”: provocam muitos acidentes rodoviários, muitas mortes e avultados danos patrimoniais. Por exemplo, na passada sexta-feira , um casal que seguia numa carrinha Mitsubishi Canter que circulava à noite não viu que a estrada (troço Cuílo) à sua frente estava cortada por uma ravina profunda. A carrinha caiu e permanece no interior da ravina, onde cabem mais quatro ou cinco carrinhas, sem que sejam vistas à superfície. A Estrada Nacional 225 liga cinco municípios da Lunda-Norte: Chitato, Cuílo, Caungula, Cuango e Xá-Muteba. O troço em questão foi reabilitado em 2018. Já na altura, o empreiteiro manifestava preocupação pelo avanço das ravinas, mas nada se fez.

Eis um exemplo claro de total incúria das autoridades para com a vida humana e os direitos dos cidadãos. Nem sequer são capazes de sinalizar adequadamente a área, para evitar mais acidentes, e declarar publicamente a via como intransitável, pelo enorme perigo que representa.

O clamor pela descentralização

De certo modo, a corrupção crónica e a falta de desenvolvimento em Angola derivam, em grande medida, da centralização imperial do poder. Este funciona como uma força de sucção dos recursos de outras partes do país, apenas destinados à luxúria e serventia dos privilegiados da capital, seus representantes e escolhidos.

O governo tem arrastado os pés na efectiva delineação de poderes, obrigações, jurisdições e direitos dos três níveis de governo: central, provincial e municipal. Como nota Cremildo Paca, as delegações provinciais de Finanças e outras constituem órgãos desconcentrados dos competentes ministérios “e não do governo da respectiva província. O mesmo se pode dizer em relação às delegações municipais”.

Por isso, o adiamento da descentralização real tem-se traduzido na total dependência das províncias e, por conseguinte, municípios, do governo central, para o financiamento das suas infra-estruturas. A administração local do Estado, segundo Cremildo Paca, “visa a realização das tarefas, atribuições e funções do Estado”. Desse modo, os órgãos da administração local “não visam a prossecução dos interesses específicos das populações residentes ao nível da respectiva circunscrição geográfica, mas sim do Estado”. Ora, quem é o Estado? O Estado somos todos nós, angolanos.

Em 1787, o triunvirato constituído pelos estadistas James Madison, Alexander Hamilton e Jay John, na sua campanha em defesa da ratificação da proposta de Constituição dos Estados Unidos da América, deixou uma frase lapidar: “Esquecemo-nos de que o bem comum, o bem-estar real da grande maioria da população, é o objectivo supremo que deve guiar a acção de um governo.” Por isso mesmo, o triunvirato repudiava qualquer forma de governo que não perseguisse este objectivo, assim como “qualquer plano de governo adverso ao bem-estar das populações”.

O descaso legal pelos interesses específicos das populações residentes, evidenciado pela administração local angolana, é justamente o que facilita a pilhagem de recursos e a captura do Estado por uns poucos concentracionários do poder em Luanda e seus representantes pelo país.

As consequências são tremendas e deploráveis: estradas em péssimo estado, postos médicos sem condições mínimas, escolas degradadas, etc.

Tem de haver celeridade, no âmbito das reformas legais e da administração do Estado, para que os governos provinciais e as administrações municipais sejam dotados de autonomia suficiente para conceberem e executarem obras que possam suprir as suas necessidades mais urgentes. Tem de haver um quadro de autonomia na cobrança e retenção de impostos a nível local, assimo como de acesso ao mercado de capitais, com o estabelecimento dos devidos mecanismos de fiscalização para a boa gestão de fundos públicos.

Já antes notámos, num seminário sobre a administração local na Lunda-Norte, que o sucesso das medidas de políticas públicas “depende mais da eficiência e eficácia da Administração Local do Estado do que da competência da Administração Central (Governo)”.

Mudança de paradigma

Porque é necessário mudar de paradigma? “

Por uma razão fundamental, também explicada no seminário: “É a destreza dos serviços mais próximos das populações que vai determinar a melhoria (ou não) da condição de vida das pessoas humanas, que devem ser vistas como seres com dignidade e não apenas como números.”

Se, “para o governo central, as populações são números e estatísticas” já para a administração local (do Estado ou autárquica), “as pessoas (populações) são vizinhas cuja angústia é sentida de perto”. Logo, “é necessário transferir as maiores tarefas da governação do centro para a chamada administração periférica (do Estado e/ou autárquica)”.

É absolutamente necessário e premente implementar e aprofundar a desconcentração administrativa. Ou seja, acelerar o processo de transferência da tomada de decisões e dos serviços para as entidades que se encontram mais próximas das populações e que melhor conhecem as suas necessidades e desejos.

Por outro lado, a larga extensão territorial de Angola é incompatível com modelos herdados do partido único, focado numa excessiva concentração e centralização do poder. Uma verdadeira descentralização administrativa ajudará a criar uma cultura de governação local que nunca existiu em Angola desde a independência.

É possível compatibilizar o aprofundamento da desconcentração administrativa com o princípio democrático que deve resultar da institucionalização das autarquias locais, através da consagração de soluções de compromisso político.

Primeiro, deve ser negociado um pacto de regime entre partidos políticos representativos do povo que assegure um período de transição (através de uma profunda desconcentração administrativa) e preparação (logística, de pessoal e equipamentos) da institucionalização das autarquias locais; um período que deve fixar-se entre cinco a dez anos.

Segundo, deve ser negociada politicamente uma solução de compromisso que aprofunde o princípio da democracia participativa. Deve ser permitida a nomeação de responsáveis locais do Estado (governadores, administradores municipais, comunais e de distrito), pessoas indicadas pelo partido político mais votado na circunscrição territorial (província, município, comuna, distrito). Esta convivência ajudaria a esbater o estigma (real ou imaginário) da partidarização das instituições e dos cargos públicos. Por exemplo, se em determinada circunscrição o partido X for o mais votado, deve ser-lhe dada a possibilidade de designar um quadro para dirigir essa circunscrição no período de transição do poder autárquico. Assim, a oposição participaria desde logo na administração local e contribuiria para uma efectiva e real transição de poder autárquico.

Conclusão

Em resumo, temos de combater energicamente, como diriam os políticos, a cultura de construir para destruir, que prevalece no seio do poder por falta de visão, por falta de noção de serviço público e de amor ao povo, e por vícios de enriquecimento ilícito.

Mas, fundamentalmente, temos de dialogar, através da democracia participativa, para que o país avance e os angolanos saibam solidariamente confiar uns nos outros enquanto construtores e protectores da sua própria nação e do bem-estar comum.

Por último, já é hora de Angola ter um plano estratégico de concepção e implementação de auto-estradas.

Esta deve ser a principal prioridade do sector dos transportes para a próxima legislatura, a par da funcionalidade e do alargamento da rede ferroviária para além do traçado colonial. Só com boas vias de comunicação poderá Angola dar um salto na diversificação da economia e consequente redução da pobreza, na promoção do turismo e do bem-estar das populações.

* Nos últimos 14 meses, o autor percorreu mais de 60 mil km por estrada pelo país.

Comentários