Eleições: a Divulgação dos Dados dos Cidadãos

A UNITA interpôs uma providência cautelar no Tribunal Constitucional devido aos procedimentos referentes à Lei do Registo Eleitoral Oficioso, alterados pela Lei 21/21 de 15 de Setembro. Esta acção judicial diz respeito ao sentido e alcance do artigo 15.º, nº 3 dessa lei.

O ponto em causa é o seguinte: “Em ano de eleições, o Ficheiro Informático dos Cidadãos Maiores é fornecido à Comissão Nacional Eleitoral até 10 dias depois da convocação das eleições, antecedidos de um período especial de actualização da BDCM e publicação provisória, para permitir a correcção de erros e omissões a promover pelos interessados, altura em que são considerados inalteráveis, e contém os dados dos cidadãos maiores à data das eleições, nos termos do artigo 143.° da Constituição da República.”

De forma não jurídica, o que esta norma diz é que, em ano de eleições, o ficheiro informático que contém os nomes dos eleitores será entregue pelo ministério responsável à Comissão Nacional Eleitoral até dez dias depois da convocação das eleições, havendo antes dessa entrega uma publicação provisória dos elementos para correcção pelos eleitores interessados.

Está assim criada uma interessante controvérsia a propósito da interpretação do artigo 15.º, n.º 3 da Lei do Registo Eleitoral Oficioso, que merece os curtos comentários que se seguem.

Mais especificamente, são duas, as expressões que têm gerado a intensa discussão que já chegou ao Tribunal Constitucional: “antecedidas de um período especial de actualização” e “publicação provisória”.

O nosso primeiro comentário diz respeito à redacção da lei. Não faz qualquer sentido que uma lei acabada de ser revista (em Setembro de 2021) contenha uma norma confusa e mal escrita. Devia ter havido cuidado técnico na elaboração dessa norma, precisamente para afastar dúvidas posteriores. Note-se que, na altura, a lei foi aprovada obviamente com o voto favorável do MPLA e a abstenção da UNITA, ou seja, não houve voto contra e não se conheceu qualquer opinião relevante acerca de complicações na redacção da norma. Teria sido preferível discutir estes detalhes no tempo da revisão, devendo o MPLA nessa altura ter aprimorado a redacção, da mesma maneira que a UNITA deveria ter levantado os temas que achava pertinentes e que agora, passados 18 meses, vem arguir em tribunal.

Mas a realidade é que a norma aí está, e a confusão interpretativa foi lançada.

Há dois pontos de discórdia na interpretação da norma. O primeiro ponto refere-se ao momento de actualização do ficheiro informático. Pode-se concluir que essa antecipação actualizadora só tem lugar após a marcação das eleições, ou pelo contrário, que não necessita da marcação das eleições, desde que ocorra em ano eleitoral.

Pensemos num exemplo. No caso da primeira hipótese: se as eleições fossem marcadas no dia 20 de Junho de 2022, haveria um período de correcção do ficheiro, admitamos que de cinco dias, até 25 de Junho, após o que, procedendo às devidas actualizações, o ficheiro seria encaminhado à CNE nos referidos dez dias, até 30 de Junho. Tudo se passaria entre o momento da convocatória das eleições e os dez dias seguintes.

No caso da segunda hipótese, o período de correcção teria lugar em qualquer altura do ano eleitoral, devendo estar pronto no momento da convocação eleitoral. Quer isto dizer que seria feito ao longo do ano de 2022, devendo estar tudo acertado em Junho de 2022.

Propendemos a considerar que esta segunda hipótese faz mais sentido.

A lei exigirá uma espécie de antecipação ao ministério responsável pelo registo informático, de modo a ter tudo preparado aquando da convocatória eleitoral.

A letra da lei parece indicar justamente nesse sentido, pois determina que os “10 dias” serão “antecedidos” por um período especial de actualização. Portanto, há dois períodos distintos: um de dez dias após a marcação das eleições, em que o ministério envia a lista à CNE; outro antecedente a esse, em que o ministério procede à actualização das listas. A actualização não se faz nos dez dias após a marcação das eleições, mas sim num momento anterior, dentro do ano civil.

O segundo ponto diz respeito ao significado de “publicação provisória.” Será que tal quer dizer que o ministério publicará as listas provisórias de modo que fiquem visíveis perante todos? Aqui será necessário ter em conta dois aspectos: o objectivo da lei e a consideração de outros direitos fundamentais.

O objectivo da lei é que cada cidadão confira e corrija os seus dados. Consequentemente, por esta via, dir-se-ia que o fundamental é encontrar uma forma que permita a cada um ter acesso aos seus dados individuais. O que a lei exige é isso: o acesso directo de cada cidadão aos seus dados.

Ora, este acesso tem de ser compaginado com os direitos fundamentais de personalidade, designadamente, o artigo 32.º da Constituição, que garante que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à nacionalidade, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva de intimidade da vida privada e familiar. A lei deve estabelecer as garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas ou contrárias à dignidade humana de informações relativas às pessoas e às famílias.

Note-se que, por determinação do artigo 15.º, n.º 2 da Lei do Registo Oficioso que temos vindo a citar, o referido ficheiro deve conter as seguintes informações sobre os cidadãos:

  • Nome completo;
  • Data de nascimento;
  • Filiação;
  • Número do Bilhete de Identidade;
  • Número de eleitor;
  • Local de residência;
  • Naturalidade;
  • Sexo.

Embora se trate de informações básicas, são demasiadas para estarem submetidas a escrutínio público por todos, designadamente os números de bilhete de identidade e de eleitor e o local de residência. E pode admitir-se que muitos não gostarão, e estão no seu direito, de ver a sua data de nascimento tornada pública.

Significa isto que a publicação geral das listas para acesso de “tudo a todos” esbarra com os direitos fundamentais de cada um – logo, é inconstitucional.

Tudo ponderado, a melhor solução será criar um mecanismo tão ágil quanto possível, dirigido aos cidadãos que pretendam saber e conhecer algo sobre os seus dados, respeitando os direitos fundamentais de cada indivíduo. As hipóteses são uma consulta por internet e via SMS, além do atendimento presencial e de uma linha telefónica exclusiva.

O assunto será agora escrutinado e decidido pelo Tribunal Constitucional. Uma das vias de decisão do TC é a declaração da inconstitucionalidade do artigo 15.º, n.º 3, quando interpretado no sentido de divulgar “tudo a todos”. Seguidamente, a Assembleia Nacional, para evitar futuros desentendimentos, corrigiria e tornaria o artigo 15.º mais claro.

Na verdade, nada impede que a Assembleia Nacional desde já lance mão do artigo 13.º do Código Civil e proceda à aprovação de uma lei interpretativa do artigo em contenda (art.º 15, 3.º da Lei do Registo Oficioso), ficando assim a questão resolvida. Uma lei interpretativa é aquela que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado. Se antes das eleições as regras do jogo não estiverem bem claras, ou se instalar grande confusão, haverá sempre a tentação de declarar o escrutínio fraudulento. Nessa medida, é urgente aplanar rapidamente todas as dúvidas que surjam, recorrendo aos mecanismos institucionais de que dispomos.

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