É Hora de Verdade e Reconciliação em Angola

Hoje, assinala-se o 45.º aniversário dos terríveis acontecimentos de 27 de Maio de 1977, nos quais o MPLA purgou dezenas de milhares dos seus antigos companheiros de armas. A Amnistia Internacional calcula que pelo menos 30 mil pessoas foram assassinadas. Muitos sobreviventes referem-se apenas ao massacre como “o 27 de Maio”, o dia e o mês que simbolizam acontecimentos indizíveis.

A versão oficial divulgada pelo grupo vitorioso do MPLA afirmou que o partido tinha sido forçado a defender-se contra uma tentativa de golpe por parte da “facção” de Nito Alves.

Os factos inconvenientes foram enterrados juntamente com as vítimas ou trancados na memória dos executores e sobreviventes. O reinado de terror desencadeado alegadamente contra a ala nitista (e qualquer pessoa a ela ligada) silenciou a dissidência interna durante décadas.

Muitos sofreram por “não saber”, muitos dos que foram morrendo ao longo destes 45 anos continuaram torturados pelo desaparecimento inexplicável de pais, filhos e filhas. No presidente João Lourenço encontraram um homem que compreendeu a sua dor. A sua própria mulher, Ana Lourenço, foi uma das dezenas de milhares de camaradas do MPLA que foram detidos e torturados. Muitos tiveram a sorte de terem sobrevivido a uma purga transformada em massacre, que tocou quase todas as famílias.

Os familiares dos mortos, particularmente os que vivem fora de Angola, formaram vários grupos para exigir a verdade. A Associação 27 de Maio foi criada em Lisboa em 2005. Os órfãos dos nitistas executados formaram o seu próprio movimento, a Associação M27.

Nada mudou até meados do mandato do presidente João Lourenço, quando este deu o grande passo de admitir que tinha havido “excessos” e prometeu um inquérito. Os activistas exigiram a emissão de certidões de óbito (ou a sua reemissão e correcção para declarar a verdadeira causa de morte), e exigiram ainda que os restos mortais dos seus entes queridos fossem localizados e exumados para posterior novo enterro.

Até ao momento, o tão apregoado inquérito não deu resultados satisfatórios. Pode até ter espalhado informações erróneas, intencional ou acidentalmente. O governo do MPLA tem o conhecimento e o poder de autorizar a divulgação de qualquer material ou informação. Há membros do governo, dos serviços de segurança e das forças armadas ainda vivos que podem testemunhar. Não terá já decorrido tempo suficiente para desenterrar a verdade, então, sepultada na sua totalidade?

Muitos insistem que só com a verdade poderá haver um verdadeiro clima de perdão para ambas as partes envolvidas. Só então a liberdade de expressão poderá levar à compreensão, ao perdão e à reconciliação. Sem isso, argumenta-se, os angolanos permanecem silenciados e amarrados à cultura do medo imposta desde aquele dia de terror.

MIL NOVECENTOS E SETENTA E SETE

Em 1977, Luanda era palco da desilusão e da dúvida passada a euforia da independência alcançada em 1975.

Esfumavam-se as esperanças sobre uma vida melhor prometida com a libertação do país. A vitória do MPLA tinha sido caucionada pela União Soviética, que ofereceu não só apoio ideológico mas também apoio material em moeda forte, treino político e militar e armas para combater, primeiro os portugueses e depois os seus rivais da FNLA e UNITA.

O MPLA era ao mesmo tempo uma organização militar e política, um movimento marxista-leninista guiado por intelectuais.

Começaram a surgir opiniões divergentes. Uma facção considerava que o “verdadeiro socialismo” tinha sido abandonado devido a uma decisão pragmática do governo de Agostinho Neto de assinar contratos de exploração e extracção de petróleo com empresas norte-americanas, numa altura em que o governo dos EUA empenhava-se em destruí-los.

Nos bastidores, os Estados Unidos estavam a travar uma guerra fria, com o objectivo de retirar a lealdade à URSS, financiando e reforçando a UNITA, enquanto persuadiam a África do Sul a destacar as suas forças de defesa como substitutas. O quase sucesso desta política cínica só foi prejudicado pelo destacamento de dezenas de milhares de soldados cubanos, a primeira vaga de internacionalistas que vieram em auxílio de Angola. Muitos cubanos negros sentem uma afinidade particular com Angola, provavelmente por serem descendentes dos milhões de angolanos escravizados e traficados para a América do Norte.

A insatisfação foi ainda alimentada por opiniões ideológicas divergentes e mesmo por argumentos pan-africanistas. Muitos angolanos tinham dificuldade em compreender porque é que a vida era pior do que no tempo dos portugueses. Para além das privações sofriam com a destruição causada pela guerra civil.

Os dissidentes começaram a associar-se e a debater opções alternativas para mudar o rumo adoptado pelos líderes do MPLA afectos a Agostinho Neto. Alguns podem de facto ter contemplado um golpe, com ou sem derramamento de sangue. Outros queriam simplesmente que Agostinho Neto prestasse mais atenção ao poder popular e menos aos chamados “moderados”. A paranóia interna do partido levou inexoravelmente a uma catástrofe.

Atacada por inimigos externos e dissidentes internos, a facção no poder entrou em paranóia. As ligações coesas – forjadas por um compromisso partilhado com a independência – começaram a dissolver-se, e o número crescente de dissidentes começou a ser visto como uma facção rival que representava um perigo claro para a liderança existente. A coorte de aliados mais próxima do presidente Agostinho Neto, ligada por mais de uma década de luta partilhada e pela fraternidade ideológica criada no exílio, tinha acordado uma estratégia que os opositores atribuíam a Lúcio Lara. Os assuntos vieram ao de cima em Outubro de 1976, no Terceiro Plenário do Comité Central do MPLA, quando o ministro da Administração Interna, Nito Alves, e o seu aliado José Van-Dúnem foram abertamente acusados pelo presidente Agostinho Neto de fomentar o fraccionismo e foram suspensos por seis meses, tendo exigido – e conseguido – a realização de um inquérito, liderado por José Eduardo dos Santos. No final desse inquérito, Nito Alves apelou à marcha de uma “grande assembleia de membros” numa demonstração de apoio público à sua causa.  Agostinho Neto perdeu as estribeiras e anunciou que os dois homens eram “ultra-esquerdistas perigosos”, definitivamente expulsos do partido.

Da esquerda para a direita: Nito Alves, José Van-Dúnem, Bakalof, Sita Valles e Luís dos Passos

Quase toda a informação sobre o 27 de Maio de domínio público surgiu quer da versão dos eventos relatada pelo MPLA de Neto quer de observadores externos.

Foram escritos relatos parciais por jornalistas e académicos estrangeiros, cuja nacionalidade ou local de residência não lhes deram motivos para temer represálias pessoais ou o súbito desaparecimento de entes queridos como retaliação. Um relato contemporâneo foi escrito pelo jornalista marxista inglês e simpatizante do MPLA Michael Wolfers, que foi a Luanda para as celebrações da Independência. Decidiu permanecer em Angola e contribuir com a formação de jornalistas para a Rádio Nacional de Angola (RNA). Wolfers esteve presente nas instalações da RNA no dia 27 de Maio e relatou sobre sobre a tentativa de controlo da estação. Da parte de académicos como Gerald Bender, David Birmingham ou John Saul vieram informações adicionais, recolhidas a partir das suas pesquisas. Grande parte destas informações papaguearam a versão oficial dos eventos do MPLA por falta de vozes alternativas. A morte ou o medo da morte tinham silenciado muitos dos que sabiam o que tinha realmente acontecido.

Recentemente, o acrescento mais abrangente a este repertório veio da minha antiga colega, Lara Pawson, que, depois de um tempo como correspondente da BBC em Luanda, ficou intrigada com o mistério e obstinada o suficiente para continuar a procurar respostas. O que ela aprendeu formou a base do seu livro In the Name of the People, Angola’s Forgotten Massacre. No entanto, também ela achou impossível chegar às fontes mais bem informadas, os participantes sobreviventes de um lado ou do outro.

É evidente que grande parte da história ainda está profundamente enterrada. A versão dos acontecimentos publicada num documento de 60 páginas pelo Bureau Político do MPLA em Julho de 1977 reconheceu a existência daquilo a que chamou fraccionismo e descreveu o grupo como “pretensos revolucionários cuja verdadeira intenção era dividir o MPLA e consequentemente desviar o povo dos seus verdadeiros objectivos naquela fase da luta: defender a integridade territorial do país contra o imperialismo e defender a Reconstrução Nacional”. O relatório do Bureau Político identificou os líderes pelos seus nomes completos: Alves Bernardo Baptista (mais conhecido como Nito Alves) e José Jacinto da Silva Vieira Dias Van-Dúnem (i.e., Zé Van-Dúnem).  E disse que os dois homens tinham sido expulsos do Comité Central do MPLA no dia 21 de Maio.

O relatório acusava-os de planear um golpe em três etapas: a primeira etapa envolvia o aparelho: infiltrar-se no partido governante MPLA e no seu exército, as FAPLA, para impulsionar a sua estratégia ideológica de extrema-esquerda, enquanto recrutavam soldados para uma eventual tomada de poder militar. O MPLA acusou Zé Van-Dúnem de utilizar as suas ligações militares pessoais para recrutar 200 soldados e influenciar a “infame 9.ª Brigada” para a sua causa.

A segunda fase consistia em minar a estrutura política existente, espalhando informações erradas para desacreditar o presidente Agostinho Neto e o Comité Central do MPLA, acusando-os de serem anticomunistas e de não seguirem o “verdadeiro caminho do socialismo”. Alegava-se que se infiltraram nos comités populares, sindicatos e movimentos de jovens e de mulheres do MPLA para difundir esta mensagem.

A terceira e última etapa seria a realização de um golpe de estado. O ministro da Defesa Iko Carreira, o secretário do politburo Lúcio Lara, chefe do DISA (Departamento de Serviços de Informação e Segurança – a polícia secreta), Ludy Kissassunda e o seu adjunto Henriques Santos “Onambwe” foram alegadamente alvos a assassinar. Outros membros importantes do MPLA seriam capturados ilesos e mantidos prisioneiros. Seriam libertados os presos políticos da prisão de São Paulo e seria assumido o controlo da estação da RNA e do jornal.

Os sobreviventes entrevistados por Lara Pawson, entre outros, admitem que Nito Alves começou a organizar dissidentes no Sambizanga. A JMPLA tinha estabelecido uma excelente equipa de futebol chamada Progresso, que, devido à crescente popularidade, realizaria reuniões do clube todas as noites no Salão Faria. Nito Alves era o presidente do clube e muitas vezes falava e entretinha os convivas. Ele era um “homem do povo”.

Os nitistas sobreviventes admitem que todas as opções foram discutidas até 27 de Maio, incluindo o destacamento dos seus aliados militares para forçar Lúcio Lara e outros a afastarem-se. Alguns, incluindo o seu irmão João, disseram que Zé Van-Dúnem tinha argumentado persuasivamente que não deveria haver derramamento de sangue e foi acordado que convocariam os seus apoiantes para as ruas para uma manifestação de massas, para mostrar a Agostinho Neto o peso do apoio à mudança de rumo. Durante o evento, alguns fraccionistas foram sem dúvida muito além disso.

Às 4 horas da manhã do dia 27, um destacamento da 9.ª Brigada, num veículo blindado, liderado por duas comandantes (Elvira da Conceição, conhecida como “Virinha”, e Fernanda Delfim, conhecida como “Nandy”), invadiu a prisão de São Paulo para libertar os prisioneiros políticos nitistas (entre eles os comissários políticos das FAPLA que apresentavam os populares programas de rádio das Forças Armadas Povo em Armas e Kudibanguela). No tiroteio que se seguiu, o chefe da prisão Hélder Neto morreu de um ferimento de bala (o presidente Neto disse que ele tinha sido assassinado pelos fraccionistas, outros disseram que se suicidou para não ser capturado).

Duas horas mais tarde, outros elementos da 9.ª Brigada ajudaram a garantir a tomada da estação de rádio, substituindo o programa esperado pelo Kudibanguela. O apresentador anunciou que a rádio tinha sido tomada por “camaradas revolucionários injustamente acusados de traição e fraccionismo”, dizendo que “estava em curso um novo processo revolucionário marxista-leninista”. Diz-se que este foi o momento em que Agostinho Neto telefonou a Fidel Castro para pedir apoio militar cubano a fim de assegurar o controlo do poder.

Às 9h30, o locutor dizia aos ouvintes que, perante os tanques cubanos que rodeavam o palácio presidencial, a manifestação em massa iria agora prosseguir para a estação de rádio. Veículos blindados cubanos, comandados pelo coronel Rafael Moracén Limonta, acompanhados por Onambwé e Delfim de Castro da DISA, a polícia secreta angolana, chegaram às 11h30. Enquanto o fogo pesado de metralhadoras atravessava a multidão de manifestantes e o edifício era retomado, a estação continuou a transmitir até que um coronel cubano pegou no microfone para dizer em espanhol ao povo angolano e ao seu presidente Agostinho Neto que a estação estava agora nas suas mãos e que havia lá algumas “pessoas confusas”. [“Que se encuentra aqui pueblo confundido“].

Por volta das 14 horas, a 9.ª Brigada tinha-se rendido. Uma hora depois, o presidente apareceu em directo na televisão para explicar o protesto, referindo que eram “membros da liderança política e militar que tinham tentado expressar o seu descontentamento em relação às medidas disciplinares”. Por volta das 18 horas o seu tom tinha mudado.

Alguns nitistas tinham feito reféns. Os apologistas dos nitistas dizem que a tomada de reféns foi uma táctica de curto prazo destinada a garantir que os organizadores da manifestação não fossem alvo de represálias. Foram levados para um local em Sambizanga (a casa de um futebolista chamado Kiferro) para os manter afastados. Homens locais, ligados ao clube de futebol, tinham recebido armas dadas por soldados na noite anterior e foram colocados de prevenção.

Esta é uma versão dos acontecimentos: não houve ordem para matar os reféns. Ao som de tiros nas proximidades, os homens que guardavam os reféns entraram em pânico e viraram as suas armas contra os reféns. Uma versão alternativa coloca os assassinatos na mão de um agente infiltrado da DISA chamado Tony Laton. Os homens assassinados incluíam os muito amados heróis da guerra de libertação, comandantes Dangereux, Nzaji, Bula e Eurico, bem como o major Saidy Mingas, ministro das Finanças. O terrível fim destes homens foi o catalisador para a brutal repressão que se seguiu.

O presidente Agostinho Neto ficou indignado com o desafio à sua liderança por parte destes jovens carismáticos. Alguns dos seus aliados próximos tinham sido assassinados. As mortes no Sambizanga, juntamente com a invasão da prisão e a tentativa de tomada da RNA foram a sua justificação para o banho de sangue que se seguiu, descrito como “julgamento rápido em sintonia com o estado de espírito nacional”. Era demasiado tarde para argumentar que um golpe não era a intenção naquele dia. Neto já tinha dito: “Certamente não vamos perder tempo com julgamentos, seremos o mais breve possível.”

Centenas de soldados, incluindo cubanos, foram enviados ao Sambizanga. Houve tiroteios indiscriminados ao longo dos dias que se seguiram, enquanto os cubanos procuravam toda a gente ligada ao clube de futebol Progresso. Os tanques cubanos deitaram abaixo dezenas de casas. Os cabecilhas foram rapidamente reunidos ou renderam-se, não querendo esconder-se enquanto muitos dos seus apoiantes eram massacrados. Nito Alves tinha estado refugiado na província vizinha do Bengo. Uma aldeã, de nome Domingas, levava-lhe a comida, transmitiu-lhe que os homens de Neto tinham ameaçado fuzilar os seus pais, a menos que ele se rendesse. Através de Domingas, ele passou a palavra ao comandante Margoso para que o fosse buscar. Foi executado, mas o paradeiro dos seus restos mortais é um mistério. Qualquer pessoa suspeita de ligações com a facção foi detida, independentemente da sua inocência. Um tribunal ilegal, apelidado de “Comissão das Lágrimas”, fez o que havia a fazer: se é culpado conforme acusado, então é condenado. Dezenas de milhares de pessoas desapareceram, algumas para as prisões, outras para campos de reeducação, outras para o exílio. A filiação no MPLA, registado como tendo 110.000 membros em 1976, desceu para 32.000 um ano mais tarde. Abriu-se uma era de medo e de silêncio que ainda não se levantou.

O presidente João Lourenço é candidato à reeleição em Agosto deste ano, para um segundo mandato de cinco anos que ainda o poder ver em funções no 50.º aniversário do 27 de Maio. Os órfãos do 27 de Maio estão a pedir ao presidente Lourenço a admissão segundo a qual o actual inquérito do ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, tem demasiadas falhas. Dizem que é altura de referir os nomes: “Não se podem conceder perdões, se não se conseguir identificar a quem se destinam”. Argumentam que a melhor hipótese de encerrar o capítulo sobre quase meio século de dor seria criar uma Comissão de Verdade e Reconciliação de Angola – um processo experimentado e testado [na África do Sul] que pode ajudar uma nação traumatizada a sarar, e que deixaria um legado de honestidade e justiça para as gerações vindouras.                            

* Antiga correspondente da BBC World Service em Luanda, 1990-92

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