27 de Maio: a Verdade como Sede de Justiça

Realizou-se hoje o “Termómetro: Encontro de Recepção de Opiniões da Sociedade Angolana”, uma iniciativa do MPLA dedicada a debater a dimensão do perdão na consolidação de uma Angola de paz, reconciliação e desenvolvimento. Convidado para o evento, Rafael Marques falou sobre o 27 de Maio e a importância da verdade para a verdadeira reconciliação. Leia aqui a sua intervenção.

‘Agradeço, desde já, o convite da direcção do MPLA para participar neste Termómetro. É uma oportunidade de diálogo, independentemente das suas motivações políticas.

Começo com uma confissão. No início de 1997, servi de intérprete para um grupo de formadores estrangeiros que ministraram um seminário à direcção do MPLA, na sua sede. Os formadores inquiriram-me sobre a melhor forma de partilhar conhecimentos com os seminaristas, bastante temidos na altura, e o processo de tradução estendeu-se ao aconselhamento sobre a melhor estratégia de abordagem ao longo do evento. A partir de então, passei a compreender melhor um dos maiores problemas que enfrentamos na nossa sociedade: a falta de confiança mútua e o facto de estarmos amarrados a intermediários estrangeiros para comunicarmos uns com os outros sobre a organização e o funcionamento do Estado.

Eis-nos aqui a falar, frente a frente, sem intermediários. Aproveito, portanto, esta oportunidade.

O mote do encontro é o 27 de Maio e a necessidade do perdão. Há anos que junto notas e converso com fontes exclusivas sobre este trágico evento. Partilho convosco três histórias que me levaram a querer coligir alguns relatos para melhor compreender esta mancha sangrenta da nossa história pós-independência.

Três narrativas do 27 de Maio

Primeiro, nos anos 90, tive o privilégio de ouvir, do saudoso nacionalista Domingos Coelho da Cruz, a história de como foi detido em casa e colocado diante de um pelotão de fuzilamento simplesmente porque era amigo próximo de Agostinho Neto. Segundo me contou, uma secretária da DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola) achou estranho que o presidente tivesse mandado fuzilar um dos seus melhores amigos e telefonou-lhe imediatamente, sem contactar a chefia. Agostinho Neto ordenou então, pela mesma via, ao chefe da DISA que retirasse o seu amigo da mira do pelotão de fuzilamento e o reencaminhasse para casa.

Num outro caso, um dos participantes das reuniões do núcleo duro do grupo de Nito Alves, que esteve presente na última reunião, a 26 de Maio de 1977, acabou detido e levado para fuzilamento imediato na zona das Palmeirinhas. Foi alinhado com mais 12 cidadãos, alguns dos quais músicos conhecidos. Salvou-se também por intervenção de uma secretária, esta do Ministério da Defesa. Assistiu ao fuzilamento dos 12 e à queima dos seus corpos. O seu nome constou da lista dos mortos e, mais tarde, fizeram-no sair do país. De acordo com este sobrevivente, no noticiário de 28 de Maio, a TPA apresentou os corpos carbonizados dos fuzilados como um acto hediondo dos fraccionistas de Nito Alves.

Em terceiro lugar, num jantar em minha casa, um casal de amigos fez-se acompanhar de uma amiga que até então eu desconhecia. A meio do jantar, ao reconhecer-me como jornalista, desfez-se em lágrimas. Foi quando me contou a história do irmão, jornalista da Rádio Nacional de Angola, detido no dia 28 de Maio de 1977 aparentemente sem saber porquê. Durante um ano, um agente da DISA – vizinho e amigo de infância do jornalista – que participou da detenção do mesmo solicitava comida à família, roupa lavada, entregava e levava correspondência ao detido e confortava-os sobre o seu estado de saúde. Só passado um ano esse amigo confessou à família que o seu ente querido tinha sido fuzilado no próprio dia da detenção. O agente até a caligrafia do amigo morto imitava para enganar a família, que o tinha como filho de casa.

Como encontrar a verdadeira reconciliação sem que relatos como os que acabo de narrar sejam documentados, sistematizados e divulgados, para que nos tornemos mais humanizados, humanizantes e humanistas?

Há crimes de uma tal magnitude, que não é possível compensar os males que provocaram através da normal punição retributiva. A vingança ou retribuição equivalente mais não fará do que criar uma espiral de maldade sem fim. Nalguns desses casos, talvez a melhor forma de lidar com o mal seja de facto o perdão. Sendo um gesto difícil, o perdão mostra uma generosidade extrema, inscrevendo‑se numa lógica que se eleva face à baixeza do mal. Nesse sentido, o perdão é sinónimo de justiça, no sentido definido pelas tragédias gregas, como Orestes, de Eurípides, onde a cadeia de vinganças só é interrompida pela irrupção da Diké, a figura emblemática da razão penal.

É neste enquadramento de procura da justiça e recusa da espiral da maldade que devemos encarar, e aplaudir, o recente pedido de perdão e desculpas que, em nome da República, o presidente João Lourenço endereçou às vítimas do 27 de Maio de 1977 e aos seus familiares. Contudo, esta iniciativa tem uma característica gravosa que impede que comece a ser feita alguma justiça e alcançado algum tipo de redenção: não se sabe precisamente do que se está a falar quando se menciona o 27 de Maio. O que realmente se passou? Quais as intenções dos principais actores? Quantas e quem foram as vítimas?

Na realidade, não existe ainda a verdade sobre o 27 de Maio. Por isso, este pedido de perdão não é ainda o julgamento justo do 27 de Maio, mas sim o início de um percurso de descoberta da verdade; percurso penoso, mas essencial para que a razão humana predomine e definitivamente sejam afastados os fantasmas da maldade, possibilitando-se o perdão que se procura. O perdão é bem definido por Paul Ricoeur como “uma espécie de cura da memória, (…) a conclusão do seu luto; libertada do peso da dívida a memória fica livre para grandes projectos. O perdão dá futuro à memória”[1].

A condição da verdade

A verdade é a condição necessária para este perdão. Consequentemente, o nosso dever é procurar a verdade, proceder a uma investigação actual dos factos passados com objectividade e sem parcialidade. Por exemplo, a propaganda comunicacional da época mostrava Nito Alves a descer de uma árvore para se entregar, quando outras fontes afirmam que ele se entregou devido à pressão que a presidência de então exercia sobre os seus pais. No fundo, Nito Alves trocou a sua vida pela dos pais. Qual é o sentido de cada uma destas versões? Onde está a verdade? É fundamental descortinar o que se passou.

Em termos mais amplos, finalmente, deve ser esclarecido se houve ou não uma tentativa de golpe de Estado, e em que termos. Qual foi o papel desempenhado pelas forças externas, como Cuba e a União Soviética, em todo o processo? Não trago comigo as respostas. O que se sabe é que existem várias versões, muitas vezes derivadas da mera filiação partidária ou da facção de cada um, abandonando-se a racionalidade e a busca do sentido objectivo e factual.

O propósito que se deve seguir é o da descoberta da verdade. Perguntar-se-á: como? Estamos, de novo, num tempo de paixões exacerbadas, de propagação de infâmias, de injúrias e de insultos, quando há fome e incertezas socioeconómicas e eleições à vista. A virulência espalha-se – felizmente, na sua maioria ainda só em palavras e nas redes sociais. A tolerância e a via média são confundidas e apodadas de traição. No entanto, a liderança deve dar o exemplo, mostrando interesse pela verdade e pela tolerância.

Tendo presente estas necessidades, é fundamental lançar o desafio para que a história do 27 de Maio seja escrita por angolanos habilitados, de forma independente e com perspectivas diferenciadas, com acesso às fontes institucionais.  Trata-se do acesso integral aos arquivos das forças de defesa e segurança da época e a todos os instrumentos considerados necessários para a sua investigação.

Os arquivos, que reflectem uma significativa gama de actividades governamentais, têm um valor extremamente relevante para qualquer investigação. Como tal, o acesso aos arquivos é essencial para se alcançar a verdade histórica, uma vez que estes fornecem acesso rápido à experiência passada.

As fontes abertas são fundamentais para se conhecer a verdade.

Só depois deste trabalho exaustivo e colaborativo entre a academia, a sociedade civil e o Estado será possível dar um sentido ao perdão e tentar encerrar o sofrimento do 27 de Maio. Aí, como declarou o evangelista Lucas (Lucas 6, 32‑35), “se amais os que vos amam, que recompensa mereceis? […] Pelo contrário, amai os vossos inimigos, fazei bem e emprestai, sem daí esperar nada”. Este é o perdão como acto de extrema generosidade que se quer alcançar. Mas ele só é possível se existir o conhecimento real do que se está a perdoar.

O tratamento da história

Em Setembro será publicado o relatório elaborado a propósito dos recentes acontecimentos e mortes nas Lundas. Não querendo antecipar conclusões, há um aspecto repetitivo da história. Partilho aqui, em primeira mão, a parte relevante das conclusões do referido relatório. Trata-se do a-historicismo do MPLA, cujos aspectos essenciais agora sintetizamos:  A ideologia do MPLA pautou-se, durante muitos anos, por um a-historicismo perturbante. O conceito essencial do partido que orientou a política governamental foi esquecer ou subverter a história de Angola, transformando tudo numa explicação assente nas relações de produção e de força, imitando o jargão marxista. As características próprias de cada situação foram submetidas a explicações simplistas que não necessitavam de aprofundamentos, buscando-se sempre o nivelamento e a uniformização; quem quer que apresentasse interpretações dissonantes seria afastado.

O tratamento pobre da história de Angola é uma das características dominantes da política intelectual do MPLA. Na verdade, como escreveu a historiadora Maria da Conceição Neto, temos de “reconhecer o óbvio: [há uma] ausência de sínteses da história de Angola (excetuando sínteses parcelares, como as que Jill Dias (1825-1890) e Aida Freudenthal (1890-1930) redigiram há 20 anos para a Nova História da Expansão Portuguesa)”[2]. Quanto ao recente trabalho do luso-angolano Alberto Oliveira Pinto, que se vai tornando uma espécie de livro único da história de Angola, “são os graves desequilíbrios no tratamento dado a diferentes períodos, regiões e temas que impedem esta obra de ser ‘abrangente’ ou ‘exaustiva’ (…), ou de ser apresentada como uma súmula da investigação contemporânea sobre história de Angola”[3].

Existiu por parte das autoridades políticas de Angola uma fuga à história, que foi substituída pela propaganda e pelas narrativas determinísticas do marxismo.

Mais recentemente, os intelectuais têm introduzido mudanças nessa abordagem. Já surgem estudos e actas de congressos mais detalhados e com novo vigor de aprendizagem da história. Todavia, esse ímpeto ainda não se repercutiu nas mentalidades políticas e partidárias. Este a-historicismo é uma das causas da confusão permanente sobre o 27 de Maio. É essencial e urgente ultrapassá-lo, de modo a concretizar o pedido de perdão do presidente da República, João Lourenço.


[1]  Ricouer, P. (1995:206) « Sanction, réhabilitation, pardon », in Le juste. Paris: Esprit.

[2] Neto, Maria da Conceição (2019:182). “História de Angola da Pré-História ao Início do Século XXI, de Alberto Oliveira Pinto”. Análise Social, liv (1.º), (n.º 230), pp. 181-185.

[3] Ibidem.

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