Angola Meu País, Uma Carta para Ti

Angola, meu país, tomo a liberdade de escrever-te directa e publicamente. Todos os dias, aumentam as fileiras de cidadãos que exercem a liberdade de expressão como um direito inalienável. Vivemos um período de transição e de expectativas goradas.

A liberdade de expressão é o pilar para que os cidadãos, passada a euforia do barulho, se dediquem a produzir ideias conducentes a soluções para os milhentos problemas que afligem o nosso povo. Só assim poderão quebrar-se os anos forçados de crença e expectativa de que os partidos e os seus políticos resolvam tudo e façam tudo depender deles. Um povo esclarecido por boas ideias acerca do bem comum produz políticos que dependem da sua vontade. É assim que deve ser.

É notória a existência de um ambiente de falta de autoridade e um sentimento público de desespero. Essa combinação pode ser assustadora. Depois de atravessarmos décadas de guerra, desgoverno e pilhagem, muitos auguravam um milagre, uma figura messiânica que incluiria, na recuperação de activos, a terra prometida.

Enquanto os concidadãos falam cada vez mais entre si, com maior abertura, assim como escrevem sobre a situação política e socioeconómica do país, eu aproveito para me corresponder contigo, minha terra, chão dos meus antepassados.

Na verdade, esta é uma nota de amor, do amor por Angola, de renovação do estado de espírito por uma Angola melhor. Sem amor, qual pode ser a causa da luta por um país melhor? É uma pergunta para a qual todos os dias procuro resposta.

É o amor pela terra que nos deve impelir a lutar pelo desenvolvimento humano dos seus habitantes, para que melhor possam cuidar desta mesma terra, Angola.

Durante oito meses, até Junho passado, circulei pelas estradas do país, de modo a renovar o meu conhecimento sobre a Angola profunda e real, os hábitos e costumes das comunidades locais, bem como a situação socioeconómica. Temos tudo o que a natureza pode dar para sermos um povo educado, trabalhador, de bom rendimento e com um alto índice de felicidade. Falta-nos o essencial: juízo.

Aqui e na foto principal (ambas tiradas durante as minhas viagens pelo país), as imagens captam a beleza inigualável de Angola.

O juízo já não depende da natureza, mas do livre-arbítrio dos homens e das mulheres. Vejo cada vez mais concidadãos a perderem a esperança nos líderes e nas suas próprias capacidades enquanto filhos e filhas deste país.

Vivemos um momento em que os políticos não ouvem, o povo tem fome e os agitadores não mostram ideias. É daqueles momentos em que temos tudo para encontrar as melhores soluções para ti, Angola, para nós, angolanos, e para o bem da humanidade.

Nota-se uma incapacidade colectiva e estrutural para compreender a noção de serviço público e do bem comum, o fundamental para ganharmos juízo enquanto sociedade, enquanto filhos da mesma terra. Veja-se o caso do poder judicial, por exemplo, que agora deveria ser, pela primeira vez na história do país, o farol da justiça, da democratização e do Estado de direito: as premissas fundamentais para uma Angola melhor. Os 38 juízes do Tribunal da Relação tomaram posse há cerca de dois anos e até hoje estão em casa sem trabalho, mas a receber o seu salário. É este o estado moribundo da justiça. A primeira instância ficou com menos juízes. Atolou-se em mais processos e sobrevive com uma falta gritante de oficiais de justiça. No Tribunal Supremo, muitos juízes conselheiros apresentam baixa médica, para não terem de julgar altos casos de corrupção. Sem justiça, o mais que podemos esperar é uma sociedade onde a arbitrariedade comanda.

Os políticos não ouvem porquê? As suas ideias e os seus actos revolvem sobretudo na manutenção e conquista do poder e na acomodação dos seus interesses pessoais e de grupo. Não temos políticos que pensem como guias que orientem o povo para os caminhos da lógica e do conhecimento, esteios do desenvolvimento humano. Os políticos julgam-se especiais diante de um povo amarrado à ignorância e facilmente manipulável. Nem sequer vale a pena falar da classe de pensadores. Não a temos. Como se melhora um país sem circulação de ideias, sem pensadores e sem um executivo competente?

Já o povo, pensa pelo estômago. Basta que os preços da coxa de frango e de alguns produtos da cesta básica, como o arroz, baixem para haver contentamento colectivo. Chegámos à fase risível do charlatanismo religioso de determinadas seitas. Fazem-se orações colectivas, com crentes vestidos com sacos (de arroz), para promover a baixa dos preços da cesta básica. Há políticos que realizam campanhas absurdas com o mesmo objectivo.

Ignoram-se as dinâmicas do mercado e a falta de ambiente de negócios na agro-pecuária.

Nas discussões públicas não se anima, por exemplo, o debate imperativo sobre a criação de fábricas de ração para que muitos cidadãos, por iniciativa própria, possam dedicar-se à criação de avícolas. Com tanto potencial agro-pecuário no país, e perto de vinte anos de paz, mantemo-nos reféns da importação de frangos, ou das suas coxas, como cá são conhecidas. Mas, para o fabrico de ração, tem de haver aumento da produção de milho e soja (proteína), cuja produção actual é insuficiente para suprir as necessidades básicas alimentares da população. Para se chegar ao aumento da produção de cereais, os impostos sobre a importação de insumos para o efeito (14%) e as taxas de juro anuais (21%) sobre os créditos afins devem ser discutidos. Enquanto a produção nacional não ganhar escala, o Estado deve isentar as matérias-primas essenciais de tributação, de modo a promover o seu aumento. Este sector tem potencial para gerar milhares de empregos, de que a juventude bem precisa.

Há bastante terra propícia para a produção de arroz, mas não há reformas agrárias nem seriedade institucional para que essas terras sejam entregues a quem tem vontade, saber e capacidade para produzir arroz. Com a mesmice actual, nem daqui a cinquenta anos teremos segurança alimentar.

Mantemos a ilusão do Estado-providência, do culto da personalidade, em que tudo depende da vontade ou da decisão do presidente. A sociedade espera que tudo seja feito por ordens políticas. Nem sequer nos passa pela cabeça que os políticos são concebidos por nós e, logo, são um reflexo do estado da sociedade.

Agora, como devolver alguma esperança à sociedade quando a fome, o desespero e a agitação popular se fundem? Eis o desafio para hoje, minha Angola.

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