Incompetência e Desorientação Política: Ensaio Parte 1

“A entronização da incompetência tornou-se moeda corrente. A destruição ou o ‘espezinhamento’ dos valores ético-morais então existentes, sem os substituir por outros, abriu as portas à permissividade que reina em quase todas as camadas sociais.” Esta constatação, tão actual, faz parte do Estudo Multidisciplinar sobre o Fenómeno da Corrupção em Angola, de 1990.

O ensaio que aqui publicamos é uma chamada de atenção para a necessidade urgente de um debate nacional sobre o fenómeno da incompetência na administração do Estado e o vazio ideológico que o perpetua. A incompetência frustra, cada vez mais, as esperanças dos angolanos de alcançarem uma vida digna e um país melhor.

No próximo congresso do MPLA, em Dezembro, e na campanha para as eleições de 2022 devem ser debatidos o problema central da incompetência e os modos de a superar. Sem isso, não é possível definir um rumo positivo e próspero para o país.

A demonstrar notoriamente que a incompetência é um problema actual e central, basta olhar para o lixo que infesta toda a capital do país, Luanda, na estação das chuvas. Trata-se de uma verdadeira calamidade pública, causada pela incompetência e incúria do governo provincial. O lixo é um vector de doenças endémicas como a malária, febre-amarela, a cólera e as doenças respiratórias. Quem não consegue sequer limpar uma cidade, não tem evidentemente competência para a governar.

Na Angola profunda, os exemplos proliferam. Basta mencionar as 17 ravinas que retalham a localidade de Cafunfo, que visitei recentemente. Algumas, na sua maior profundidade, têm a altura de um edifício de seis andares. Várias pessoas já ali morreram, caídas. O Estado, e quem o representa, não revela qualquer sensibilidade face a esta miséria, muito menos intervém para resolver este grave problema ambiental nem para proteger da vida das comunidades afectadas.

Uma das ravinas fatalmente perigosas de Cafunfo, exemplo paradigmático da negligência e total insensibilidade das instituições do Estado para com o bem-estar e a segurança dos cidadãos.

No final deste ano, o MPLA, partido que conta com 46 anos ininterruptos no poder, realizará o seu congresso ordinário. O Estado em Angola continua a confundir-se com o MPLA, como consequência ideológica dos primórdios da independência. Logo, o fenómeno da incompetência dever ser um tema central no seu próximo conclave. Não há como realizar mudanças sérias na administração do Estado sem reformar radicalmente o MPLA.

Pela natureza do poder em Angola, continua a prevalecer a lógica do partido-Estado, cuja hegemonia assenta em famílias e amigos privilegiados. A subordinação do Estado e de toda a vida económica e social à liderança do MPLA, reafirmada no Congresso Especial do MPLA de 1980, mantém-se ainda hoje em vigor no exercício real do poder político.

Essa lógica de partido-Estado é agravada pela falta de avaliação periódica do desempenho dos dirigentes e titulares de cargos públicos. Na verdade, quanto mais erros cometem, mais promoções estes titulares recebem – trata-se de um dos muitos paradoxos da governação em Angola.

Desde a independência – à excepção de alguns períodos, devidos à bonança do petróleo (2004-2008 e 2010-2014) –, Angola tem tido uma experiência de somatórios de crises políticas (i.e., guerras), económicas e sociais. A incompetência “entronizada” tem sido um factor impeditivo da construção de uma “nova sociedade”, que se quer transparente e funcional, mas que assim permanece nos “escombros” da nossa incapacidade.

Com a chegada de João Lourenço ao poder, em Setembro de 2017, geraram-se grandes expectativas. Esperava-se que, com os mesmos governantes rotativos do MPLA, o mesmo poder judicial, os mesmos deputados, a mesmíssima administração pública e a mesma oposição e sociedade civil organizada, o novo presidente concertaria a cepa torta de 42 anos (1975-2017) de crises intermitentes. Seria um recorde mundial de transformação política e económica, uma verdadeira obra messiânica.

No entanto, três anos é tempo suficiente para o presidente estabelecer uma nova visão, uma nova liderança e melhores práticas de actuação do governo e da administração pública que estimulem a confiança e a segurança nos cidadãos. Muitos, impacientes, não acreditam que esteja a ocorrer uma tentativa tão pacífica quanto possível de transição de poder. Preferem o derrube imediato dessa transição. Paremos para pensar. Qual é a alternativa inteligente e imediata?

A incompetência e o vazio ideológico, há muito enraizados na administração do Estado, afirmam-se como os principais factores da aparente desorientação dos agentes políticos e da sociedade em geral quanto ao momento actual e ao rumo do país.

Não há princípios nem valores comuns que sirvam de referência para a conduta e os actos dos servidores públicos, assim como para o exercício pleno da cidadania. É urgente discutir este vazio ideológico, para o substituir por valores e objectivos concretos, a partir dos quais se defina claramente o papel do Estado, do MPLA, do poder dos governantes e das liberdades dos cidadãos.

A ideologia pode ser definida como o conjunto de valores comuns que servem de alicerces na organização administrativa do Estado, determinam a orientação do governo no exercício do poder e animam a participação do cidadão na vida pública.

O vazio ideológico pode ser resumido na forma como há décadas se exerce quer o poder político quer o funcionalismo público. A manutenção do poder político e seus privilégios continua a ser a finalidade do seu exercício. Por arrasto, o funcionalismo público também opera dentro dessa lógica, e o vazio ideológico perpetua o reino da incompetência.

De certo modo, as estruturas de exercício do poder político não estão vocacionadas para dar solução aos problemas reais e quotidianos da sociedade, a qual, por sua vez, se vê refém da desordem.

A cultura de irresponsabilidade dos servidores públicos tem raízes profundas: em vez de se apontar o dedo à má gestão da administração do Estado, culpabilizam-se os cidadãos pelas suas desgraças. O resultado é uma mentalidade generalizada de sabotagem dos actos tendentes ao bem comum. Como poderemos transformar as consciências e as instituições, de modo a colocá-las ao serviço da busca de soluções para o bem comum?

Para começar, propomos a estruturação de quatro pilares de suporte que, juntos, devem servir de ideologia para a reforma holística da administração do Estado e do próprio MPLA. Estes pilares são o conhecimento, a solidariedade, a funcionalidade e a liberdade.

A oportunidade da crise

Perante situações de grave crise, sob a ansiedade que estas provocam, o ser humano é capaz de procurar soluções inovadoras, originando invenções, descobertas e grandes estratégias. De facto, as situações extremas obrigam-nos a perceber que, se continuarmos a proceder sempre do mesmo modo, não conseguiremos avançar.

A vida em Angola tem sido marcada pelo agravamento diário das condições socioeconómicas da maioria da população, não obstante as reformas em curso. A fome e o desemprego não toleram reflexões idealistas sobre o Estado da nação. Apelam ao imediatismo, geram frustração e desespero. O que está em causa é o modo de sobrevivência.

Mas a situação tenderá a piorar se a sociedade não discutir, com profundidade e elevação, sobre o que estrangula os actos de governo, a funcionalidade da administração do Estado e o exercício pleno e inteligente da cidadania.

Por isso mesmo, o enfoque do presidente, no tempo de poder que lhe resta até às eleições de 2022, deve ser a liderança e a mobilização da sociedade para a reforma efectiva e eficiente da administração do Estado e do MPLA. Quer o Estado quer o MPLA devem estar vocacionados para solucionar as preocupações dos cidadãos, conforme os seus direitos fundamentais e deveres constitucionais. Com efeito, a incompetência, na sua actual mutação política de modelo de gestão pública, deve ser vigorosamente combatida.

Este deve ser o contributo principal de João Lourenço. Porquê?

Primeiro, porque elegeu o combate à corrupção como a prioridade do seu governo. Este combate só terá sucesso, a médio e longo prazo, com o resgate das instituições públicas. Trata-se de acabar com a captura do Estado por parte de uma elite corrupta, um problema sistémico que paralisa e adultera toda a administração do Estado. Todavia, não é possível combater a corrupção com altos níveis de incompetência na administração do Estado. A incompetência é um acelerador da corrupção.

Segundo, o país vive uma grave crise económica e social. O relatório da Direcção Nacional de Saúde Pública, divulgado pelo Novo Jornal, revela que todos os dias, em Angola, morrem à fome 46 crianças com menos de 5 anos. É trágico e revoltante.

O país tem recursos hídricos e solos férteis abundantes que, bem administrados, podem acabar com a fome em pouco tempo, gerar receitas para o país com exportações e criar riqueza. Só a incompetência impede que as dádivas da natureza neste país sejam devidamente aproveitadas para um bom desempenho da economia angolana.

As intenções de reforma económica não têm correspondido a concretizações. Temos velhas receitas recicladas, de economia planificada, com roupagens novas. Estas receitas mantêm o atraso, mantêm os oligopólios e mantêm as barreiras ao crescimento económico.

À administração do Estado deve caber o papel de coordenação, de vigilância competitiva. O Estado deve criar condições de estabilidade macroeconómica e de confiança, para que os investidores nacionais e estrangeiros voltem a assumir riscos, gerando mais emprego e produção.

Porém, não se tem verificado o crescimento da estabilidade e da confiança macroeconómicas. Em parte, esse fracasso resulta do facto de o Banco Nacional de Angola ter iniciado a liberalização cambial no momento errado. A liberalização cambial é uma medida correcta, mas que foi tomada sem o necessário alinhamento com as medidas económicas sectoriais.  

Aos valores de mercado livre, o valor do kwanza entrou em queda abrupta, o que gerou uma onda de destruição das poupanças dos angolanos, dependentes de produtos importados para a cesta básica, bem como o quase descontrolo da dívida pública, indexada à moeda externa.

Na mudança de presidentes, em 2017, a economia já apresentava sérias distorções. Segundo fonte oficiosa, o kwanza estaria sobrevalorizado em cerca de 70 por cento em relação ao dólar, contribuindo para a fuga acentuada de capitais. A compra e venda de divisas na rua dominava o mercado cambial, então desestruturado, e as reservas internacionais líquidas caíram em cerca de 30 por cento.

Em 2016, a inflação atingiu os 42 por cento. Parte do problema estaria numa política monetária assente na impressão de moeda para cobrir o défice fiscal. Essa emissão não foi correspondida com o aumento da produção nacional. Como consequência, a capacidade de compra (procura) é superior à da oferta, causando a especulação e o aumento de preços, ou seja, a inflação.

Vale a pena reiterar a necessidade, já tardia, de um ajuste macroeconómico. Todavia, a desarticulação das políticas económicas e o momento escolhido para a liberalização cambial (numa recessão económica e com as reservas de moeda externa em queda) resultaram no agravamento do modo de subsistência da maioria dos angolanos.

Este agravamento também resulta do facto da economia nacional continuar extremamente dependente do petróleo, um sector que tem conhecido mais recuos. Só no primeiro trimestre deste ano, as receitas do petróleo registaram uma queda de 16 por cento. Em 2020, as receitas de exportação registaram um declínio de 42 por cento (menos $13 mil milhões), comparadas com o ano anterior, que atingiu $32,1 mil milhões. Como notam os especialistas, este sector contagia os não petrolíferos, já de si profundamente afectados com a economia planificada e agravados pela COVID-19.

Nas finanças, temos uma abordagem modernizadora inspirada no consenso de Washington, preocupada com as finanças públicas e a dívida nacional. Estes são elementos necessários, mas não suficientes para uma retoma económica sustentada. Por outro lado, temos um sistema fiscal demasiado complexo e desencorajador do investimento privado.

É fundamental que haja coerência entre as políticas fiscais, económicas, monetárias e cambiais. Todas as políticas têm de estar alinhadas ao serviço da criação de confiança para o crescimento.

Terceiro, é preciso criar uma cultura de serviço público na consciência dos funcionários do Estado, com a dignificação do seu trabalho, o reconhecimento dos méritos e a captação de talentos. Sem a funcionalidade das instituições do Estado e o seu fortalecimento, não há resolução eficaz dos problemas do povo; não há soluções, não há desenvolvimento humano.

Como nota o académico Cremildo Paca, “a função primordial da administração pública é a satisfação das necessidades da colectividade ligadas ao bem-estar social, à cultura e segurança”.

O vazio

Na reforma da administração do Estado, é fundamental definir com rigor o papel do Estado na economia. Porquê? Primeiro, porque as reformas económicas introduzidas pelo governo de Lourenço têm sido marcadas pelo agravamento das condições socioeconómicas reais da maioria dos cidadãos, o qual é ainda mais acentuado pela inépcia da equipa económica, como referimos acima. Há mais fome e mais desemprego, e a pandemia de COVID-19 apenas veio piorar a situação.

Segundo, prevalece a confusão entre o Estado e a propriedade privada, ou seja, a captura do Estado por interesses de certos grupos. Importa recorrer à génese desta promiscuidade, que também marcou o processo de deriva ideológica do MPLA. No seu congresso ordinário de Dezembro de 1985, o MPLA conclamou simultaneamente a manutenção do sistema de partido-Estado, de ideologia soviética marxista-leninista, e a introdução do capitalismo na economia, que alguns chamavam de “socialismo de mercado”, uma corruptela da economia de mercado.

Foi então adoptado o chamado Saneamento Económico e Financeiro (SEF), que, segundo especialistas da época, teve méritos pontuais. Introduziu métodos de mercado, contribuiu para debelar a recessão económica de 1985 e 1986 (então agravada pela baixa do preço do petróleo) e implementou as reformas sectoriais que, em 1988, permitiram a entrada de Angola no Fundo Monetário Internacional (FMI).

Desde então e até à data presente, tem sido o vazio ideológico, como afirma um estudioso do Bureau Político do MPLA. Sem reformas simultâneas do sistema político e da administração pública, a abertura económica serviu de esteio para os próprios dirigentes pilharem o país, sob o argumento da “criação da burguesia nacional” e da “acumulação primitiva do capital”. Em última análise, usou-se o sistema político para reprimir a sociedade e o modelo económico para a despojar dos bens públicos.

Entram ainda nesta equação os aspectos culturais. Conforme defende o economista e filósofo Francis Fukuyama ao reflectir sobre o processo de construção dos Estados, o desenvolvimento das instituições formais e o sucesso do planeamento económico são fortemente afectados por factores culturais, mas deixarei por agora de lado esta vertente do problema, a que regressarei noutro futuro texto.

[Amanhã publicaremos a segunda parte deste ensaio. Serão aí abordados em pormenor os quatro pilares que propomos para sustentar ideologicamente a reforma do Estado angolano: conhecimento, solidariedade, funcionalidade e liberdade. Os leitores poderão também aí aceder a uma breve lista bibliográfica directamente relacionada com este tema.]

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