O “Diabo” da Kadyapemba

Jonilson Joaquim, de 33 anos (na foto principal), encontra-se em Cafunfo, na província da Lunda-Norte, há pouco mais de um ano. É mais um entre os milhares de jovens, angolanos e estrangeiros, que buscam a sobrevivência ou a riqueza através do garimpo de diamantes, nessa região tão rica e tão trágica.

Jonilson Joaquim tem o pescoço todo marcado por cicatrizes, causadas pelas unhas de um vigilante da empresa privada de segurança Kadyapemba Segura – Lda, criada em 1999 pelo actual comandante provincial da Polícia Nacional em Luanda, comissário Fernando Eduardo Cerqueira. Esta empresa é contratada pela Sociedade Mineira do Cuango para proteger as suas actividades de exploração diamantífera e respectiva área de concessão.

Passados nove dias sobre as agressões, Jonilson Joaquim queixa-se de dificuldades em beber água e engolir alimentos. O guarda, identificado como Massana Benvindo “Diabo”, quase o estrangulou com as suas próprias mãos.

Por sua vez, Mboma Fernando, de 41 anos, natural do Cuango, também se queixa do pescoço, pela forma brutal como o mesmo “Diabo” o apertou e arranhou.

Esta é mais uma narração da violência gratuita e da corrupção nas áreas diamantíferas.

Os depoimentos que aqui publicamos foram antecipadamente partilhados com o consultor jurídico da Kadyapemba, Jorge de Almeida. Em resposta, o jurisconsulto desmente as ocorrências e qualifica os depoimentos como histórias inventadas.

Diz tratar-se de um “aproveitamento” por parte de quem quer o fim do contrato da referida empresa. Acusa os garimpeiros de estarem ao serviço do “secretário municipal do Cuango”. Remete a responsabilidade para a “precariedade de vida” das populações locais – um problema que é responsabilidade do governo. Ademais, garante que 80 por cento dos efectivos da Kadyapemba são oriundos da região e questiona: “O que leva parentes e conterrâneos a agirem assim uns contra os outros?” Refere-se, claro, à violência. Leia a resposta integral de Jorge de Almeida no fim do texto.

O regedor-adjunto de Ngonga Ngola, Lourenço Xamuangala, apela ao Serviço de Investigação Criminal (SIC) e à Procuradoria-Geral da República para que investiguem o caso, ou então que seja nomeada uma comissão independente para o fazer.

“As vítimas estão aqui, presentes, ainda com as cicatrizes no pescoço, pela tortura, e nos braços, pela forma como os amarraram. Eu paguei pessoalmente ao chefe do posto Garcia, e tenho muitas mais a revelar. Podem vir, ou chamem-nos para vermos quem está a inventar histórias”, afirma Xamuangala.

Na manhã do passado dia 19 de Abril, um grupo de seis garimpeiros iniciou a sua labuta nas imediações do bairro Ngonga Ngola, encravado na área de concessão diamantífera da Sociedade Mineira do Cuango. Ngonga Ngola faz parte do município de Xá-Muteba, por situar-se na margem oeste do Rio Cuango, que o separa de Cafunfo (município do Cuango).

Para terem acesso à referida zona de garimpo, onde são depositados os inertes (cascalho) já processados pela lavaria industrial do projecto mineiro, o grupo de garimpeiros afirma ter pagado ao chefe do posto local da Kadyapemba.

“O Garcia exigiu-nos novo pagamento. Disse-nos que tínhamos de fazer novo contrato. Explicámos que já tínhamos pagado e ele tinha de ter palavra.”

“Os garimpeiros conseguiram três sengas (pequenos diamantes sem valor comercial) que foram vendidos por 45 mil kwanzas. Os guardas já não incomodaram. Gastou-se mais do que se ganhou”, conclui Xamuangala.

Regedor adjunto Lourenço Xamuangala

Nessa altura, dois garimpeiros, identificados apenas como Sene e Mateus, fugiram. “O mais velho João Cachano saiu da mata antes de sermos capturados, porque apanhou cobra seca”, conta o garimpeiro.

Os restantes, Mboma Fernando, Wachegada Matxissala e o próprio Jonilson Joaquim foram amarrados, com as mãos atrás das costas.

“Assim amarrados, levámos surra de verdade. O mesmo Massana deu-me uma cabeçada que me deixou inflamado durante vários dias”, revela Jonilson Joaquim.

Por sua vez, Mboma Fernando conta sobre a violência dos tabefes de Massana: “As chapadas que me deu, nas orelhas, não sei se eram de feitiço. Fizeram-me sangrar muito. Ele também apertou-me muito o pescoço, com as duas mãos, e arranhou-me, enquanto a namorada dele assistia sentada na motorizada dele.” O garimpeiro lamenta ter o pescoço com cicatrizes, “como se tivesse lutado com um gato”.

“O Massana, bem conhecido por nós, queria mostrar à sua namorada que é um homem muito forte, o maior. Os miúdos do bairro chamam-lhe ‘Diabo’, por ser muito bruto”, explica Jonilson Joaquim.

Essa demonstração de força passou por agarrar também o pescoço de Jonilson Joaquim, com as duas mãos, “tipo para enforcar-me. Eu estava a perder os sentidos e ele arranhou-me o pescoço todo”.

Sob o olhar silencioso do “chefe” Garcia, “o Diabo disse-nos: ‘Vocês não são nada. São tipo cabritos. Podemos matar-vos aqui e não vai acontecer nada.’”

Os captores, incluindo a namorada do Diabo, encaminharam os prisioneiros para o posto Lima 4, da Kadyapemba. Mboma Fernando e Jonilson Joaquim relatam que o Diabo continuou a espancá-los ao longo do percurso de cerca de 20 minutos. “Ele continuou a bater-nos na caminhada, como se fôssemos escravos.”

Já no posto, contam os detidos, os captores juntaram os três garimpeiros e amarraram os três pela cintura, com a mesma corda, mais forte do que as que lhes prendiam os braços.

“Aqui, o cozinheiro, os miúdos que fazem a limpeza dos Kadyapemba e até um motoqueiro que ia a passar espancaram-nos com catanas, pontapés, quedas, bofetadas”, narra Jonilson Joaquim.

Pouco tempo depois de mais esta sessão de pancadaria, foram levados à base da Kadyapemba, onde permaneceram detidos até às 17 horas do dia seguinte, em cárcere privado.

“Na base, desamarraram-nos e colocaram-nos algemas nos pés. O mesmo par servia para algemar o pé esquerdo de um e o direito do outro. Puseram-nos um balde à frente para as necessidades [fisiológicas]. Nós os três tínhamos de levantar ao mesmo tempo, para um urinar”, prossegue Jonilson Joaquim.

Jonilson Joaquim refere terem que decorreram 21 horas sem sequer terem tido direito a um copo de água. “Às 17 horas, entregaram-nos ao posto policial do Ngonga Ngola, onde fomos obrigados a varrer as instalações antes de nos libertarem.”

Para seu infortúnio, depois da pancadaria que sofreu, Jonilson Joaquim conta ter recebido apenas dois mil kwanzas (o equivalente a três dólares) do patrocinador senegalês, para o seu tratamento.

“Aqui ninguém quer saber de nós. O Estado ignora-nos, os seguranças privados brincam com as nossas vidas e os estrangeiros só nos exploram. É muito azar junto”, remata.

“Como é prática, para trabalharmos à vontade, pagámos um total de 130 mil kwanzas ao chefe do posto Lima 4, de nome Garcia”, conta Jonilson Joaquim.

De forma a garantir a “boa-fé” do esquema, o interlocutor afirma que os seus patrocinadores, os irmãos senegaleses conhecidos apenas por Condé e 05, recorreram à mediação do adjunto do regedor de Ngonga Ngola, Lourenço Xamuangala.

Este, por sua vez, confirma ao Maka Angola ter recebido 200 mil kwanzas das mãos dos senegaleses e ter feito a entrega pessoal de 100 mil kwanzas nas mãos do chefe do posto Lima 4, conhecido apenas por Garcia. Mais 30 mil kwanzas foram entregues ao Gugu. Os restantes 70 mil kwanzas serviram para comprar mantimentos para outro grupo de garimpeiros.

“Fui eu mesmo quem entreguei o dinheiro ao Garcia. O Garcia disse que eles [garimpeiros] só poderiam começar a trabalhar passados três dias, para lhes garantir melhor protecção com o seu turno”, reafirma o regedor adjunto.

Então, no dia 22, segundo o regedor adjunto, celebrou-se um novo acordo e “o Garcia indicou um subordinado seu para acompanhar os garimpeiros ora referidos na lavagem do cascalho, durante dois dias”.

O Maka Angola tem vindo a documentar, ao longo dos anos e em vários relatórios, os esquemas de corrupção e tortura levados a cabo por guardas das empresas privadas de segurança.

É simplesmente incompreensível o nível de sadismo e desumanidade de vigilantes como o “Diabo”, que, ao serviço de empresas privadas de segurança, espalham o terror na região diamantífera das Lundas.

Resposta da Kadyapemba

Reproduzimos na íntegra a resposta de Jorge de Almeida, consultor jurídico da Kadyapemba:

“Estas informações têm tanto de verdade quanto o fim do arco-íris ter ouro.

Na verdade tudo não passa de um aproveitamento dos infelizes acontecimentos dos últimos dias, para desmoralizarem os efectivos da empresa e a própria empresa, com o intuito de que está última seja afastada do contrato e consequentemente do projecto.

Porém, como a história tem demonstrado, o problema não são as empresas de segurança, mas sim a precariedade de vida a que estão sujeitas as populações, o que as força a colocarem-se em situações de periculosidade da própria vida, apenas para garantirem o pão à mesa.

Note que tanto os efectivos da nossa empresa que maioritariamente (+80%) são natos da região, quanto os garimpeiros são parentes.

Então a questão é, o que leva parentes e conterrâneos a agirem assim uns contra os outros?

A empresa a que estão vinculados ou a luta pela sobrevivência?

A Kadyapemba defende e protege a vida humana e não pactua com actos de barbárie contra pessoas, qualquer que seja a sua condição ou de desrespeito as leis.

O que se afirma nesta matéria não corresponde à verdade, aliás estes indivíduos segundo se apurou são trabalhadores ‘garimpeiros’ do Secretário Municipal do Cuango, que tal como outros responsáveis e autoridades tradicionais, dentre os quais o próprio Regedor Adjunto, enviam bilhetes solicitando acesso à zona de garimpo para exploração ilícita, promovendo e fomentando o garimpo, e quando rejeitados inventam tais histórias.

Disso temos provas, porquanto mantemos registos dos mesmos.”

Para esclarecimento das declarações acima reproduzidas, remetemos duas questões a Jorge de Almeida:

P: Mesmo que assim seja, há o direito de os guardas espancarem esses garimpeiros?

R: Reafirmo que a empresa detém uma política de tolerância zero com tais práticas.  Se chega ao nosso conhecimento um facto do género, resulta logo em processo de averiguações e posteriormente disciplinar, que por via de regras culmina em despedimento sem prejuízo do competente procedimento criminal.

P: Também acha fantasioso o relato de pancadaria a que os garimpeiros foram sujeitos?

R: Aliás vezes sem conta somos chamados à PGR por motivos de despedimento disciplinar, de trabalhadores que se envolvem em práticas de garimpo ou de agressão a garimpeiros. Enquanto não vir provas dos factos nada posso afirmar de concreto, sob pena de falácia. Porém, das averiguações efectuadas baseadas nas informações que me enviou, resultou a informação de que este grupo de cidadãos, a mando do Regedor Adjunto, tentou corromper efectivos nossos, e por terem sido rejeitados, aproveitam a vossa presença para apresentarem agora estas histórias.

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