Breve Teoria da Revisão Constitucional

Temos recebido muitas e variadas perguntas acerca da revisão constitucional, no sentido de clarificarmos o que significa este processo e explicitarmos algumas distinções importantes, como revisão ordinária e extraordinária, ou revisão pontual.

A revisão constitucional é um acto eminentemente político, pois pretende modificar alguma parte, maior ou menor, da Constituição, que é a lei que determina a organização e o funcionamento do poder político e a sua relação com os cidadãos. Portanto, a revisão constitucional é, acima de tudo, obra de políticos, e só depois de juristas, pelo que a sua discussão deve ser o mais alargada possível e não estar reduzida a tecnicismos.

O facto de um assunto geralmente circunscrito aos maçadores bancos da faculdade se tornar tema de interesse público é, por si só, digno de aclamação e regozijo. Por isso, procuraremos neste texto responder, dentro do possível, a algumas dúvidas que nos foram colocadas, para assim alargarmos o debate além das fronteiras dos juristas.

Quem pode decidir uma revisão constitucional?

A revisão constitucional não surge subitamente – antes obedece a um procedimento formal rigoroso, explícito nos artigos 233.º a 237.º da Constituição da República de Angola (CRA). Este é o primeiro ponto a salientar: existem normas constitucionais específicas que determinam como se procede a uma revisão da Constituição e quais os limites aplicáveis.

Em Angola, a iniciativa de revisão da Constituição é da competência do presidente da República, ou de pelo menos um terço dos deputados à Assembleia Nacional em efectividade de funções (artigo 233.º da CRA).

Assim, há dois órgãos que podem anunciar a vontade de proceder a uma revisão constitucional: o presidente da República e 1/3 dos deputados em efectividade de funções. Tomar a iniciativa não é aprovar, é apenas colocar a “bola em campo”. Depois, podem “marcar golo” ou não. Isto é, pode haver revisão aprovada ou não.

Revisão ordinária, extraordinária e pontual

A iniciativa de revisão constitucional está balizada por vários limites, que regra geral não são intransponíveis.

Dois dos conceitos que têm levantado mais dúvidas são os de revisão ordinária e revisão extraordinária. Não se tratam de conceitos muito relevantes: apenas servem para clarificar os limites temporais de uma revisão constitucional (artigo 235.º), sendo que esses limites podem ser ultrapassados com uma maioria adequada na Assembleia.

Assim, uma revisão ordinária é a que ocorre cinco anos após a aprovação da Constituição. Este prazo já passou em 2015, mas nesse ano poderia ter havido uma revisão ordinária.

Também se chama revisão ordinária àquela que tenha lugar cinco anos após a última revisão ordinária. Imaginemos que este ano (2021) se procede a uma revisão constitucional. Isso quereria dizer que a próxima revisão ordinária poderia acontecer em 2026.

Significa isto que, pelo meio, não pode haver revisão constitucional? Não. Na verdade, pode haver revisão constitucional em qualquer ano e em qualquer prazo. A diferença é que, no prazo ordinário (de cinco em cinco anos), basta a iniciativa de 1/3 dos deputados ou do presidente da República. No caso de se querer fazer uma revisão adicional em 2022, por exemplo, após a ordinária de 2021, é necessária uma deliberação de 2/3 dos deputados da Assembleia Nacional em efectividade de funções (artigo 235.º, n.º 2 da CRA).

A distinção entre revisão ordinária e extraordinária não é, logo, muito relevante. Mais ainda no caso de Angola, em que um partido (o MPLA) tem 2/3 dos deputados – nesta circunstância, a diferença torna-se quase irrelevante. A Assembleia pode decidir fazer uma revisão constitucional a qualquer momento.

Note-se que este conceito não está relacionado com uma expressão que tem sido muito usada: “revisão pontual”. Do ponto de vista jurídico, “revisão pontual” é somente uma expressão qualificativa da língua portuguesa: onde se diz “revisão pontual”, poderia estar “revisão parcial”, “revisão simples”, “revisão ligeira”.

Há alguma coisa que não se possa mudar numa revisão?

Quando se decide proceder a uma revisão constitucional, pode-se mudar quase tudo, excepto aquilo que a própria Constituição proíbe. Os limites das alterações estão indicados no artigo 236.º da CRA. Nos termos desta norma, não podem ser objecto de revisão constitucional os seguintes aspectos: a) A dignidade da pessoa humana; b) A independência, integridade territorial e unidade nacional; c) A forma republicana de governo; d) A natureza unitária do Estado; e) O núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias; f) O Estado de direito e a democracia pluralista; g) A laicidade do Estado e o princípio da separação entre o Estado e as igrejas; h) O sufrágio universal, directo, secreto e periódico para a designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania e das autarquias locais; i) A independência dos Tribunais; j) A separação e interdependência dos órgãos de soberania; k) A autonomia local.

No entanto, é admissível que, perante um processo de dupla revisão constitucional, mesmo estes limites possam ser mudados. O processo consiste no seguinte: numa primeira revisão constitucional, revê-se o artigo 236.º, afastando o limite que se pretende modificar; numa revisão seguinte, revêm-se as normas que anteriormente estavam limitadas.

Por exemplo, se quisermos que Angola tenha um rei em vez de um presidente da República, são estes os procedimentos necessários: primeiro, realiza-se uma revisão a abolir a alínea c) do artigo 236.º, que determina que não se pode rever a forma republicana de governo; extinguida essa alínea, abre-se mais tarde um novo processo de revisão, em que se modificam em concreto os artigos referentes ao presidente da República, tornando-o rei.

Note-se que este é um mero exemplo académico. Não se está a defender que Angola seja transformada numa monarquia. Trata-se apenas de demonstrar que os limites materiais da revisão constitucional do artigo 236.º podem eles mesmos ser sujeitos a revisão.

Verificámos já que existem limites de tempo e de matéria em relação à revisão constitucional, mas que esses limites podem ser ultrapassados. Finalmente, resta abordar os limites circunstanciais (artigo 237.º). Segundo estes, durante a vigência do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência, não pode ser realizada qualquer alteração da Constituição.

Aprovação da revisão

Quem aprova a revisão constitucional? Regra geral, o presidente da República e um determinado número de deputados podem iniciar o processo de revisão constitucional. Mas a aprovação do texto final dessa revisão, da nova redacção da Constituição, apenas pode ser decidida por maioria de 2/3 dos deputados em efectividade de funções (artigo 234.º, n.º 1), e o presidente da República é obrigado a aceitar e promulgar o que os deputados aprovem, embora possa requerer a fiscalização destas normas ao Tribunal Constitucional.

Ou seja, a única forma legal de que o presidente da República dispõe para se opor a uma revisão constitucional aprovada por 2/3 dos deputados é o envio do novo texto para o Tribunal Constitucional.

A importância do Tribunal Constitucional

Para aqueles que andam um pouco distraídos a menorizar o Tribunal Constitucional, convém relembrar que este é talvez o órgão com mais poder jurídico final do Estado. Ao Tribunal Constitucional cabe a última palavra sobre os resultados das eleições e a última palavra sobre qualquer revisão constitucional.

Num Estado de Direito, o Tribunal Constitucional tem mais força que vinte divisões de tanques.

Resumo do processo de revisão constitucional

Em suma, havendo iniciativa do presidente da República ou da Assembleia Nacional, sendo respeitados os limites, existindo aprovação das alterações por 2/3 dos deputados da Assembleia e não havendo declaração de inconstitucionalidade, as alterações da Constituição que forem aprovadas são reunidas numa única lei de revisão, e o novo texto da Constituição é publicado, conjuntamente com a lei de revisão. Portanto, passa a existir uma nova Constituição totalmente válida.

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