Umas Voltas pela História Constitucional de Angola

Por razões profissionais e académicas, tenho passado algum tempo a coligir elementos sobre a história constitucional de Angola, tentando recuar aos primórdios e desconstruir mitos, como aquele que atribui as actuais autocracias e ditaduras a uma suposta “tradição africana / angolana”, na qual tudo assenta e depende de um chefe todo-poderoso, auxiliado por uma dose razoável de corrupção.

Na verdade, uma curta incursão pelas várias realidades políticas angolanas pré-coloniais e coevas do colonialismo apresenta-nos uma história muito mais rica e diversa do que esta pseudo-tradição africana, que só tem servido para justificar as autocracias e os ditadores na contemporaneidade.

No actual território de Angola, existiram muitas sociedades que viviam à margem do Estado, organizadas em torno de um governo por consenso, em que as decisões eram tomadas por conselhos alargados das aldeias. Lemos com deleite a descrição primorosa do historiador angolano Patrício Batsîkama sobre a democracia no Congo do século XV, e que para o público interessado está vivamente sintetizada nesta óptima entrevista da jornalista Natália da Luz. Mais tarde, foi a vez da dupla legitimidade política invocada pela Rainha Njinga, uma legitimidade por vezes electiva, outras vezes hereditária.

Uma análise séria, mesmo se breve, mostra que não existe, portanto, uma constante estruturante que faça assentar tudo num poder do chefe único e autoritário, mas sim diferentes manifestações da organização do poder político, que se modificaram ao longo do tempo e de acordo com as influências históricas.

Na verdade, acaba por ser a intervenção colonial a impor uma estrutura uniforme, em que prepondera um poder centralizado e sem disputa. Isto mesmo se torna completamente evidente no Estado Novo português (1933-1974) e no desenho constitucional que este regime delineou para Angola.

Em curtas palavras, pode dizer-se que tudo dependia do ministro do Ultramar: mudaram-se leis, mudaram-se símbolos e designações formais, mas, no fim de contas, o poder do ministro do Ultramar, e, por maioria de razão, do presidente do Conselho de Ministros português, era próximo do absoluto. Havia um chefe e era esse chefe quem decidia.

Esta era a matriz material do constitucionalismo português do Estado Novo, organizada essencialmente para vestir o poder de Salazar.

O curioso é que é essa matriz portuguesa que passa para a estruturação constitucional angolana pós-independência. Há a mesma diferença entre a forma e a substância, entre o que é escrito e o que é praticado, e mantém-se o culto do chefe. Substituiu-se Salazar pelos novos presidentes do país, mas os instrumentos jurídicos e, sobretudo, a prática não foram distintos.

Pode-se então designar o actual constitucionalismo angolano como luso-angolano e não como angolano. É evidente que todos os constitucionalismos têm fontes estrangeiras: também o constitucionalismo português sofreu influências britânicas, francesas, italianas e alemãs, entre outras.

O que se passa é que, no caso angolano, há uma espécie de translação constitucional, com poucos aportes estruturais locais. Exemplo disto é o livro mais conhecido sobre a história constitucional angolana, Angola. História Constitucional, da autoria do professor Adérito Correia e do actual vice-presidente Bornito de Sousa. O trabalho, publicado em 1996, é essencialmente uma compilação de documentos constitucionais, abundando os textos constitucionais portugueses, que ocupam as páginas 217 a 484. Há uma ausência total de referências a experiências constitucionais angolanas pré-1975, e o curto mas ilustrativo capítulo sobre história constitucional de Angola começa, algo bizarramente, com a Constituição portuguesa de 1911 (p. 13), rapidamente passando para o Estado Novo português e culminando na Lei Constitucional angolana de 11 de Novembro de 1975 (p. 21). Haverá razões metodológicas para não se recuar aos reinos angolanos, ou mesmo a sociedades anteriores, a principal das quais será a falta de fontes ou de textos escritos designados como “Constituição”. Contudo, o que a metodologia deste livro acaba por reforçar é a continuidade jurídica entre Portugal e Angola.

O livro de Adérito Correia e de Bornito de Sousa é obviamente uma base, a base possível na época, e por isso deve ser aplaudido. Mas no seu seguimento torna-se necessária uma investigação intensa e documentada do constitucionalismo angolano. Esta investigação não é um mero pedantismo intelectual ou um academismo sem sentido.

O conhecimento de toda a história constitucional de Angola será um instrumento fundamental e necessário para se perceber que a ditadura e autocracia em que tantos países africanos mergulharam, e pela qual foram destruídos, não é uma “tradição” relativamente à qual nada se pode fazer.

Na verdade, o sistema jurídico centralizador é uma herança do domínio colonial, que obviamente na altura se justificava para Portugal, mas que hoje em dia, para uma nação que se quer independente e próspera, não se justifica de todo. É imperativo estudar o passado, para se traçar um rumo futuro assente no governo por consentimento e na diversidade histórica e cultural angolana.

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