O Mito do Não-Controlo Parlamentar do Executivo

Há um mito recorrente no constitucionalismo angolano, segundo o qual a Constituição de 2010 não permite que a Assembleia Nacional fiscalize os actos do poder executivo. Esse mito foi reforçado e transformado em realidade, durante uns tempos, pelo tristemente famoso acórdão n.º 319/13, de 23 Outubro, do Tribunal Constitucional.
Na verdade, este acórdão, escrito pelo então juiz conselheiro Raúl Araújo e subscrito pelos juízes Rui Ferreira, Américo Garcia, Miguel Correia, Onofre dos Santos e Teresinha Lopes, declarou ser inconstitucional a participação de ministros ou de altos responsáveis do Executivo em Comissões Parlamentares ou audiências na Assembleia Nacional sem a autorização do presidente da República, bem como a realização de interpelações e inquéritos ao Executivo, e igualmente perguntas ou audições de ministros. Esta peça judicial foi vista como um ponto baixo da jurisprudência constitucional, ao coarctar os poderes da Assembleia para vigiar e questionar ministros. Foi, aliás, estranho que apenas seis dos onze juízes do Tribunal Constitucional a tenham aprovado.
Parecia que o Executivo poderia fazer tudo sem controlo, à parte o controlo dos eleitores, de cinco em cinco anos. Alguns, como o experiente jurisconsulto sul-africano Andre Thomashausen, enfatizaram, para justificar o acórdão, a fundamentação extrajudicial apresentada por Rui Ferreira, então presidente do Tribunal, para uma aproximação restritiva e conservadora. Rui Ferreira entendia que um activismo judicial excessivo levaria à fragilização da democracia nascente e à repulsa, por parte do poder político, relativamente ao Tribunal Constitucional. Nesses termos, seria preferível ir paulatinamente decidindo de forma consentânea com o governo, mas fazendo-o aceitar a necessidade de obedecer à lei.
Quer tenha sido uma estratégia florentina para afirmar o Estado de Direito, quer tenha sido por deferência absoluta do Tribunal Constitucional face a José Eduardo dos Santos, a realidade é que o efeito fundamental deste acórdão foi deixar o governo mais descontrolado do que já estava. E todos se recordam do desgoverno que vigorou a partir dessa altura.
No entanto, como ainda recentemente, e de forma clara, afirmou no Congresso de Direito Constitucional Carlos Feijó, sempre intitulado como o “pai da Constituição de 2010”, o certo é que as interpretações constitucionais variam e existem várias normas constitucionais, além do artigo 162.º, que permitem o controlo parlamentar. Nunca é demais repetir que foi a mesma Constituição dos Estados Unidos de 1787, ainda hoje em vigor, que permitiu a escravatura e a sua abolição, a segregação racial e a sua extinção.
Ora, o argumento deste texto é que, neste momento, o acórdão de 2013 já não está em vigor, tendo caducado, e as proibições nele constantes já não se aplicam.
O argumento sobre a não aplicação do acórdão de 2013 tem diferentes fundamentos: um de natureza formal; e outros, mais importantes, de natureza hermenêutica e substantiva. Em termos formais, o acórdão caducou porque a lei a que se destinava era a Lei n.º 12/13, de 2 de Maio. Esta lei foi revogada. Neste momento, a Lei Orgânica que vigora é a Lei n.º 13/17, de 6 de Julho.
Contudo, mais importante do que a caducidade do acórdão devido à revogação da lei sobre que o mesmo se debruçava, o importante é perceber que a nova lei de 2017, que define o novo regimento da Assembleia Nacional, contém várias normas que permitem a fiscalização do Executivo, as quais não foram colocadas em crise pelo Tribunal Constitucional. Houve, portanto, uma modificação hermenêutica com implicações substantivas. E hoje temos um quadro mais alargado de possibilidades de controlo parlamentar do Executivo.
Sem pretensões de exaustividade, enumeremos algumas hipóteses.
Os artigos 166.º e 167.º da Lei Orgânica n.º 13/17 determinam que, no âmbito das Comissões de Trabalho Especializadas da Assembleia Nacional, os ministros e outros altos responsáveis podem participar nos trabalhos depois de solicitação destas comissões. Tal solicitação terá a forma de requerimento para a presença do ministro e deverá ser concertada com o presidente da República. Concertação não é autorização. Parece poder deduzir-se que, neste caso, os deputados já podem requerer a presença de ministros nas suas comissões, sem necessitarem de autorização do presidente da República.
Uma outra forma de controlo – que aliás é manifestamente importante, sempre existiu e se inclui no artigo 162.º da CRA – é a possibilidade de apreciar os actos normativos do presidente da República. Os actos legislativos do presidente estão, regra geral, submetidos ao controlo da Assembleia. Isto não é novo, mas é importante enfatizar.
É de realçar a possibilidade de realizar debates sobre assuntos de interesse geral ou público, que podem incidir sobre qualquer uma das tarefas fundamentais do Estado, tal como definidas no artigo 21.º. Designadamente, o debate pode ser sobre a criação das condições necessárias para tornar efectivos os direitos económicos, sociais e culturais dos cidadãos; promover o bem-estar, a solidariedade social e a elevação da qualidade de vida do povo angolano, nomeadamente dos grupos populacionais mais desfavorecidos; efectuar investimentos estratégicos, massivos e permanentes no capital humano, com destaque para o desenvolvimento integral das crianças e dos jovens, bem como na educação, na saúde, na economia primária e secundária e noutros sectores estruturantes para o desenvolvimento auto-sustentável.
As tarefas enunciadas competem, em primeira linha, ao Executivo, mas podem ser avaliadas, discutidas e sindicadas em debates parlamentares nos quais os ministros podem participar (cfr. artigo 290.º da Lei n.º 13/17).
Muito importante é o artigo 300.º da Lei n.º 13/17, que delimita o âmbito da fiscalização da Assembleia Nacional, determinando que esta pode incidir sobre “todas as entidades públicas que exercem funções materialmente administrativas com eficácia externa”. Esta formulação, contida no n.º 1 do artigo 300.º, coloca todos os actos administrativos do governo sob a alçada da Assembleia Nacional. Nesse actos incluem-se, além dos óbvios, como aqueles que estão ligados a empréstimos ou ao Orçamento Geral do Estado, outros ainda, como “informações sobre os principais assuntos de interesse nacional” (artigo 301.º, c). O articulado subsequente é bastante exaustivo na afinação dos vários detalhes de interacção entre os vários órgãos.
Não se vislumbra, nesta lei, o proibicionismo que resultava da interpretação que o Tribunal Constitucional fazia da anterior lei. Pelo contrário, parecem existir mecanismos suficientes que permitem à Assembleia Nacional, se o quiser, acompanhar de perto as actividades do Executivo, contar com a presença e colaboração de ministros, obter informações e debater os principais assuntos sob a alçada do Executivo.
Queremos acreditar que ocorreu uma mudança interpretativa e legislativa, e que já estão criados alguns mecanismos de fiscalização e debate das políticas do Executivo por parte da Assembleia Nacional, cabendo aos deputados viabilizar e aplicar essas normas.
Mais um exemplo da nossa subserviência lusitana. Nem uma foto ilustrativa da Assembleia Nacional de Agola, o Maka Angola tem.
Nosso país é um campo de experimentação da dita augusta academia lusitana, Ti Canotilho, Ti Miranda, Ti Celito, Ti Verde e outros eruditos, sabem mais sobre Angola do que a nossa nata Bantu.
Pelos jargãos e clichês neste texto, fico com a nítida impressão de que o autor preferiu desta vez dirigir-se à classe. A continuar assim, terá que arranjar outro fórum, do gênero Harvard law review.
O argumento segundo o qual, o acórdão n.º 319/13, de 23 Outubro deixou de vigorar, e, por isso, supoe-se que se esgotaram as razões para a exigência da revisão constitucional, está longe de suportar a opinião do autor. Porque, entre as várias razões que levam os angolanos a exigir a revisão da Constituição, ressalta a necessidade de se emendar o artigo 106, “designação do PR e de deputados”.
Quanto á ideia distorcida que quer passar, segundo a qual a Constituição dos EUA “permitiu a escravatura e a sua abolição, a segregação racial e a sua extinção”, a verdade é a seguinte: Por falta de tempo e espaço para detalhes, fica aqui telégrafado que os primeiros escravos chegaram na antiga colônia, em 1650. Para além, claro, da Constituição americana ter ao longo dos cerca de dois séculos de existência sofrido várias emendas, sendo a última revisão datada de 1992. Como os diamantes, a Constituição pode ser eterna, mas tem que ser polida para se ajustar á nova realidade do país.
Não consigo não comentar que a imagem associada ao artigo seja a do parlamento… em Portugal.