Os Jacarés do Cuangar – Parte 1
Muito se tem falado sobre a necessidade imperiosa de realização de eleições autárquicas com vista à institucionalização das autarquias locais. Mais do que a mera discussão do assunto, é fundamental um escrutínio cabal dos actos da administração local do Estado que se encontra mais próxima das populações e que presta os serviços elementares que auxiliam na sua vida quotidiana. No Cuangar, para alguns cidadãos, a questão é ser ou não ser devorado por um jacaré, e de que forma a administração local responde a essa possibilidade.
Nesta investigação do Maka Angola, sentimos de perto alguns dos actos da administração municipal do Cuangar, na província do Cuando-Cubango, que tem cerca de 40 mil habitantes. O Cuangar dista 400 quilómetros da capital provincial, Menongue, num trajecto rodoviário que consome mais de dez horas, devido ao estado das estradas. A sua administradora municipal é Amélia Marta Kakuhu.
O Maka Angola tem-se dedicado a verificar pagamentos realizados entre Março e Junho deste ano, a maioria dos quais durante o Estado de Emergência, e no âmbito do Programa Integrado de Desenvolvimento Local e Combate à Pobreza (PIDLC). Há serviços pagos e não prestados, incluindo a promoção de actividades culturais como a dança e a pintura, seminários sobre empreendedorismo e vacinação de gado. Há pagamentos antecipados destinados a celebrações proibidas em tempo de pandemia. De forma resumida, reportamos aqui uma amostra de pagamentos cumulativos que ultrapassam os 60 milhões de kwanzas.
Desde 2018, os 164 municípios do país recebem mensalmente uma dotação orçamental de 25 milhões de kwanzas cada destinados ao PIDLC. É dessa verba atribuída ao Cuangar que aferimos a capacidade e o compromisso da administração local na resposta à “angústia” das comunidades locais. Onde há menos dinheiro e bens, a parcimónia deve ser maior.
Com efeito, para além das provas documentais, o Maka Angola conversou com vários funcionários da administração municipal do Cuangar, cujas identidades mantém sob anonimato, a seu pedido e para sua protecção enquanto fontes de informação. Devido à importância das suas declarações, dois altos funcionários são referidos apenas como Fontes 1 e 2. Por sua vez, a administração municipal, representada pelo consultor económico Rafael Massati Chinoia, apresenta a versão oficial.
A tragédia do jacaré
Há poucos dias, um menino foi devorado por um jacaré na margem do Rio Cubango, no Cuangar. Esta é uma tragédia recorrente na zona do rio para onde as pessoas se deslocam para buscar água, tomar banho e atravessar para a outra margem.
Este episódio lamentável fica contudo ensombrado pela existência de pagamentos para obras de protecção da zona balnear do rio, com vista à garantia da segurança das comunidades locais. “As malhas são para proteger as zonas do rio onde a população acarreta água e toma banho. Esse trabalho não foi realizado até à data”, denuncia a Fonte 1.
Foram efectuados dois pagamentos, a 26 de Março passado, à empresa Metarquitectura Lda., no valor total de três milhões e 700 mil kwanzas, para “aquisição e aplicação de malhas metálicas, incluindo tubos metálicos para vedação das áreas balneárias na margem do Rio Cubango”. Trata-se das ordens de saque n.ºs 67 e 69.
A Metarquitectura Lda., constituída a 29 de Junho de 2018, é propriedade de Carlos Gustavo Mundombe, chefe do Departamento dos Serviços Técnicos e Infraestrutura do Governo Provincial do Cuando-Cubango, e de António José Kambinda Dala, chefe do Departamento de Estudos e Projectos do Gabinete de Estudos de Planeamento e Estatística (GEPE) do Governo Provincial do Cuando-Cubango.
“O Cuangar é o município com maior concentração de jacarés no Rio Cubango e os animais comem muitas pessoas”, lamenta a Fonte 2.
Por sua vez, o consultor económico da administração municipal do Cuangar, Rafael Massati Chinoia, esclarece que o empreiteiro não iniciou a obra em Março devido ao elevado caudal do rio: “O empreiteiro disse-nos que tinha de esperar pelo tempo seco, para baixar o nível de água e realizar as obras ora iniciadas.”
O consultor sublinha que, em Fevereiro passado, no dia da apresentação da administradora, um cidadão foi devorado por um jacaré na referida zona balnear. “Por isso, a administradora decidiu priorizar essa obra”, explica.
Rafael Chinoia adianta que a obra está orçamentada em mais de sete milhões de kwanzas, “mas estamos a discutir uma adenda e provavelmente aumentaremos o valor”.
A Fonte 2 ri-se, apenas, e esclarece que o caudal do rio sobe entre Novembro e Fevereiro. “Assim, a obra será feita no próximo ano. O caudal baixa entre Abril e Junho.”
Sempieka – da arte à vacinação do gado
Com vista a “criar incentivos de desenvolvimento de actividades culturais nas aldeias e localidades da sede municipal e comunais: dança, produção de obras artesanais, retratos em forma de quadros e publicação”, a administradora Amélia Marta Kakuhu pagou cinco milhões de kwanzas à empresa Sempieka. A prova é a ordem de saque n.º 61, de 26 de Março de 2020.
“Não vi a realização dessa finalidade. Nem antes nem depois do Estado de Emergência”, revela a Fonte 2.
Como resposta oficial, Rafael Chinoia afirma: “Não tivemos sucesso com esta actividade, porque entrámos na fase das restrições [Estado de Emergência]. Estamos a aguardar o momento próprio para executar o trabalho. O empresário já foi pago e prestará o serviço.”
No mesmo dia, 26 de Março, a Sempieka recebeu mais uma ordem de saque (n.º 59), no valor de dois milhões e 500 mil kwanzas, destinada à formação de corte e costura de 35 mulheres rurais na sede municipal e comunais. “Não houve qualquer formação do género por parte dessa empresa”, afirma a Fonte 1.
Rafael Chinoia contraria esta informação e afirma, sem especificar datas, que a Sempieka realizou, durante o Estado de Emergência, as acções de formação de corte e costura nas comunas de Savate e Bondocaíla. Vários membros da administração municipal corroboram a hipótese de que essa formação tenha sido “secreta”.
Ora, a Sempieka, constituída a 1 de Março de 2016, é propriedade do ex-vice governador do Cuando-Cubango e ex-administrador municipal de Mavinga, Simão Baptista, que tem como sócios a esposa e as filhas. Por sua vez, o irmão mais novo de Simão Baptista, Moniz Canhanga Baptista, é genro da administradora Amélia Marta Kakuhu. Moniz Baptista é actualmente o chefe do Departamento de Análises Económicas e Financeiras da Delegação Provincial de Finanças do Cuando-Cubango, e até Outubro passado coordenava, por parte da Delegação de Finanças, o acompanhamento da execução financeira dos 25 milhões de kwanzas atribuídos mensalmente ao município do Cuangar para o PIDLC.
“É uma coincidência. Ninguém contava que a sua sogra [de Moniz Canhanga Baptista] fosse nomeada administradora do Cuangar”, justifica Rafael Chinoia.
Para “apoio da campanha de vacinação do gado bovino” na sede municipal e nas comunas, a Sempieka recebeu, a 29 de Junho, mais um milhão e 400 mil kwanzas, de acordo com a ordem de saque n.º 150. “Não houve vacinação de gado. Neste ano, não houve qualquer campanha de vacinação de gado no município”, assevera a Fonte 1.
“A empresa nem foi ao terreno para vacinar. Esse trabalho depende do Instituto de Desenvolvimento Agrário (IDA), que tem os medicamentos e os técnicos. Não é trabalho de uma empresa privada”, acrescenta.
O consultor económico da administração municipal do Cuangar confirma que, “de facto, a primeira fase da campanha de vacinação não foi realizada”.
“Quando o IDA falha na entrega das vacinas, nós também não temos como realizar o programa. Como administração, fazemos a nossa parte em termos de apoio”, diz. Segundo Rafael Chinoia, há um surto de febre aftosa que afecta o gado na região, e “alguns meios adquiridos à Sempieka, como as caixas térmicas, serão usados nessa campanha”.
Estamos então perante uma empresa extremamente versátil: a Sempieka tanto é qualificada para a vacinação do gado como para a produção de obras de arte.