Repressão de Protesto Viola Constituição

Realizou-se ontem, dia 24 de Outubro, uma manifestação em Luanda com o objectivo de reivindicar melhores condições de vida, mais emprego e a realização das primeiras eleições autárquicas em Angola. A manifestação, promovida por activistas sociais, estava convocada há mais de três semanas e os organizadores reuniram-se antecipadamente com o chefe de operações do Comando Provincial da Polícia Nacional, com quem definiram a rota da manifestação e superaram algumas divergências de pormenor.

Na véspera do acontecimento, porém, João Lourenço decidiu decretar novas medidas de agravamento do estado de calamidade, proibindo ajuntamentos com mais de cinco pessoas e, teoricamente, proibindo a manifestação.

Ora, um decreto não pode anular a Constituição, a qual garante a liberdade de manifestação, ainda que preveja a possibilidade de lhe impor alguns condicionamentos, como veremos adiante. Assim, os organizadores mantiveram o protesto, ao qual se juntaram vários elementos da oposição. A polícia reagiu com violência, recorrendo a gás lacrimogéneo, cavalos, cães e balas de borracha.

Foram detidas dezenas de pessoas. Neste momento, de acordo com informações transmitidas pelo porta-voz dos organizadores da manifestação, Benedito Jeremias Dali, há 41 detidos na sede do Serviço de Investigação Criminal, 45 detidos na 9.ª Esquadra, distrito de Sambizanga, e 25 detidos na Esquadra dos Ossos, na Boavista. Foram também detidos alguns jornalistas enquanto exerciam a sua profissão, a quem a Polícia não só apagou imagens captadas da manifestação, como os submeteu a agressões. Além disso, a Polícia atingiu a tiro um dirigente da UNITA no braço, e uma jovem no abdómen, e suspeita-se ainda de que tenham espancado um jovem até à morte.

DIREITO DE MANIFESTAÇÃO

O direito de manifestação está previsto no artigo 47.º da Constituição da República de Angola (CRA), que estabelece o seguinte:

  • 1. É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei.
  • 2. As reuniões e manifestações em lugares públicos carecem de prévia comunicação à autoridade competente, nos termos e para os efeitos estabelecidos por lei.

O artigo 47.º encontra-se inserido no Capítulo II do Título II da Constituição e é, por isso, um direito fundamental directamente aplicável e que vincula todas as entidades públicas e privadas (artigo 28.º, n.º 1 da CRA).

O direito de manifestação tem uma força constitucional reforçada e só pode ser cerceado nos termos do artigo 58.º, n.º 1 da CRA que estipula: “O exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos apenas pode ser limitado ou suspenso em caso de estado de guerra, de estado de sítio ou de estado de emergência, nos termos da Constituição e da lei.”

Portanto, fora desta situação de limitação ou suspensão dos direitos, liberdades e garantias, existe sempre um direito de manifestação.

Contudo, a Constituição admite que, embora o direito de manifestação não possa ser suspenso a não ser nos casos do artigo 58.º, a lei ordinária possa estabelecer regulações e condicionantes para o exercício desse direito.

Nesse sentido, a lei pode determinar, como determina, que as manifestações não se aproximem das sedes dos poderes soberanos, ou estabelecer horários (cfr. artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 16/91, de 11 de Maio, Lei sobre o Direito de Reunião e de Manifestação). Neste âmbito, torna-se evidente que a lei ordinária não pode proibir manifestações, mas pode condicioná-las. Obviamente, esse condicionamento pode ser imposto por razões de saúde pública.

Assim, na presente situação referente à manifestação de 24 de Outubro de 2020, não se vê o fundamento legal para proibir a manifestação, mas vislumbra-se que a manifestação pudesse estar sujeita a condicionamentos sanitários: por exemplo, os manifestantes terem de permanecer com pelo menos dois metros de separaçãos entre si, todos deverem usar máscara, todos lavarem as mãos com gel de 30 em 30 minutos, não se aproximarem de zonas com grandes aglomerados populacionais, etc.

Não havendo estado de guerra, estado de sítio ou estado de emergência, mas existindo a pandemia Covid-19, este poderia ser o quadro restritivo a impor a uma manifestação.

Obviamente, limitar a manifestação a cinco pessoas não faz sentido à luz da Constituição, pois equivaleria a esvaziar o direito de manifestação, coisa que não pode ser feita através de um simples decreto. De facto, um decreto não anula nunca a Constituição.

Por outro lado, é evidente que a violência não é permitida em nenhuma manifestação e não há qualquer direito de resistência consagrado na CRA, ao contrário do que se passa na Constituição Portuguesa (artigo 21.º da CRP) ou na Constituição Alemã (artigo 20.º, n.º 4). Consequentemente, não existe qualquer justificação legal para incendiar pneus no meio da estrada, queimar motas de propriedade pública ou privada, nem quaisquer outras acções similares.

A NECESSIDADE DE UMA POLÍTICA DE EMPREGO

Muitos observadores imputaram várias motivações obscuras à manifestação que ocorreu ontem, dia 24 de Outubro, levantando o espectro da recrudescência da guerra civil ou a intervenção de financiamentos de pessoas ligadas aos denominados “marimbondos”.

Não entrando nesta discussão, o certo é que esta e outras manifestações são, em grande parte, uma demonstração do descontentamento profundo da juventude com a sua presente situação.

Nunca é demais referir que metade dos jovens estão sem emprego em Angola, terminam os seus cursos caros e nada encontram para fazer, há uma enorme falta de oportunidades, de condições para milhões de jovens. Não é de admirar que se esteja a formar uma juventude muito zangada.

A política do governo tem de começar a encarar o problema do desemprego e da falta de oportunidades dos jovens de forma séria e activa. É por isso que surpreende ouvir a ministra das Finanças – uma pessoa que se afigura capaz e competente – referir que as suas prioridades são a dívida e a saúde. Obviamente, a saúde e a educação são sempre uma prioridade, mas a dívida só o é na perspectiva da sua gestão: a dívida tem de ser bem gerida para não haver quebras de confiança e sobressaltos, mas fora isso não é uma prioridade.

A prioridade em Angola é só uma: começar a produzir bens e serviços de base nacional e criar empregos.

A economia angolana não é uma economia que funcionasse bem no passado, sofrendo agora de umas quantas avarias que as políticas de estabilização do Fundo Monetário Internacional (FMI) (que habitualmente se resumem a cortar o défice e a dívida) possam resolver.

A economia angolana nunca funcionou bem para a sua população, portanto, tem de ser submetida a uma profunda mudança estrutural.

Trata-se de uma missão muito difícil, mas tem de existir um discurso de esperança que mostre um rumo à juventude. Os jovens têm de perceber que o governo está a ouvi-los e que vai fazer alguma coisa por eles. Caso contrário, o caos é iminente.

Por isso, é urgente encetar um grande programa de emprego e de recuperação da produção nacional. Programa que só pode ser liderado pelo Estado. Como há muitos anos explicou o economista inglês Lord Keynes, há alturas, quando a procura agregada privada não é suficiente, em que o Estado deve avançar e começar ele próprio a investir e consumir para criar emprego, deve ser o Estado a lançar as bases da recuperação económica e a relançar o emprego, esperando-se que os privados venham atrás.

O desafio de criar emprego é o desafio fundamental que o governo angolano enfrenta em mais este momento delicado da sua história.

Para responder à manifestação de 24 de Outubro, o governo precisa de se empenhar na resolução das graves dificuldades sentidas pela população, e não optar por proibições e pela lamentável repressão policial a que ontem assistimos.

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