Sonangol: O Epicentro da Pilhagem de São Vicente – Parte 3

As galinhas devem à raposa

Carlos Manuel de São Vicente enfrenta agora um processo judicial na Suíça, como referimos na primeira parte desta investigação, tendo visto congeladas as suas contas bancárias. Ironicamente, nas suas declarações à justiça helvética com vista ao “descongelamento” dos 900 milhões de dólares em que neste momento não pode tocar, São Vicente alegou que as transferências resultavam do reembolso de empréstimos pessoais que havia feito ao grupo AAA em 2009 e 2016.

Este argumento de São Vicente parece uma daquelas fábulas infantis em que a raposa, contratada para tomar conta do galinheiro, alega ter-se empanturrado com as galinhas para saldar a dívida que estas alegadamente tinham para consigo.

Por norma, qualquer empréstimo de accionistas tem de ser aprovado em Assembleia-Geral e registado na Conservatória do Registo Comercial sob a forma de empréstimo subordinado. Até ao momento, o Maka Angola ainda não encontrou, na sua investigação, qualquer prova sobre o registo dos alegados empréstimos pessoais concedidos por São Vicente às AAA, bem como o pagamento de impostos sobre a dívida.

Há, como se vê, várias informações curiosas sobre as quais Carlos Manuel de São Vicente e a Sonangol devem pronunciar-se publicamente. E não se ficam por aqui. Não se conhece, por exemplo, a distribuição de dividendos aos accionistas feita pelas AAA, no período mencionado por São Vicente.

O fim da farra

Em Dezembro de 2016, a Sonangol solicitou um estudo sobre a optimização de seguros, bem como a revisão dos contratos de seguros com as operadoras petrolíferas.

Por sua vez, o então Ministério dos Petróleos e a Agência Angolana de Regulação e Supervisão de Seguros (ARSEG) pressionaram a Sonangol a efectivar o pagamento de seguros em falta a favor da AAA Seguros S.A.

Dos factos analisados pelo Maka Angola, o valor global das facturas pendentes de pagamentos apresentados por Carlos Manuel de São Vicente, na qualidade de dono e PCA da AAA, ascendia a 258 milhões de dólares. Deste montante, a Sonangol contestava a imensa sobrefacturação da mesma, de acordo com os seus estudos de mercado. Segundo a Sonangol, o valor global das facturas remetidas pela AAA Seguros S.A. tinha sido inflacionado em 74 por cento. Com a transferência para a ENSA (Empresa Nacional de Seguros de Angola), a Sonangol pouparia mais de metade do montante cobrado por São Vicente, no caso, cerca de 152 milhões de dólares. Sublinha-se como essa sobrefacturação contribuía bastante para a drenagem das reservas internacionais, com a justificação de cobertura de seguros.

Os esquemas de pilhagem liderados por Carlos Manuel de São Vicente terminaram com uma decisão política. O Despacho Presidencial n.º 39/16 retirou o monopólio de facto dos seguros do petróleo à AAA Seguros S.A., e a estatal ENSA recuperou a liderança do regime especial de co-seguro das actividades petrolíferas (seguro petroquímico).

Carlos Manuel São Vicente (foto cortesia Novo Jornal)

Quando o referido despacho entrou em vigor, a AAA IRB tinha na sua conta bancária um total de 72,6 milhões de libras. No final de 2017, esse valor tinha mingado para quatro milhões de libras.

Para termos uma ideia da grandeza dos esquemas financeiros, com aparente licitude, atentemos aos custos operativos desta empresa de 2014 a 2017, já como propriedade exclusiva de São Vicente e por si presidida. Nesse período, a AAA IRB, com um total de 15 funcionários, gastou escandalosamente 122 milhões de dólares só com pagamentos de salários e emolumentos, com uma média anual de 31 milhões de dólares para manter uma empresa fantasma. Não se distingue o valor dos salários de São Vicente e dos restantes 14 funcionários.

No seu relatório e contas de 2017, a AAA IRB registou uma queda brusca de 59 por cento do seu volume de negócios, como consequência do referido decreto presidencial. O relatório cita-o como uma medida que cria “incerteza” sobre a sua operacionalidade. No ano seguinte, 2018, houve outra queda brusca no volume de negócios da resseguradora baseada em Londres, de 53 por cento em relação ao ano anterior, com transacções no valor de apenas quatro milhões de libras. Com o fim do monopólio concedido pelo Estado angolano, a empresa de São Vicente em Londres praticamente deixou de ter clientes.

Com o fim do reinado da AAA, só em 2017, os dados da ARSEG calculam que o país terá poupado, em divisas, 150 milhões de dólares. Em 2018, esse valor foi superado.

A justificação de Carlos Manuel de São Vicente às autoridades suíças, na sua tentativa desesperada de desbloqueio dos 900 milhões de dólares, merece uma nota. São Vicente argumentou ter concebido um novo modelo de gestão de riscos, de seguro e resseguro para as operações petrolíferas em Angola e, pelo seu alegado génio, obteve o monopólio do negócio para a AAA Seguros.

Quanto à engorda de centenas de milhões de dólares na sua conta bancária, a defesa de São Vicente referiu ter havido uma espécie de “direito de autor” atribuído à criação desse modelo.

Em Fevereiro passado, a licença seguradora da AAA Seguros, a fonte do império AAA, caducou e não foi renovada, após decisão de dissolução voluntária. Sagrou-se então o fim de mais um império de saque. Sem o dinheiro e o poder da Sonangol, o “génio” empresarial de São Vicente esfumou-se e resta-lhe apenas a imagem de um predador primitivo, um charlatão.

Mais para São Vicente, menos para 12 milhões de angolanos

Quem imaginaria alguma vez que a filha de Agostinho Neto, o fundador da Nação, ao atacar os maiores predadores de Angola, estaria afinal a atacar o seu próprio marido, a si mesma e à sua família?

Os 900 milhões de dólares congelados na Suíça, nas contas de Carlos São Vicente, da própria Irene Neto e dos filhos de ambos são superiores ao Orçamento Geral do Estado (OGE) revisto e combinado de 10 das 18 províncias de Angola, nomeadamente Bengo, Cunene, Huambo, Kuando-Kubango, Kwanza-Sul, Lunda-Norte, Lunda-Sul, Moxico, Namibe e Uíje. No total, estas províncias recebem 865 milhões de dólares, para um universo de 12 milhões de habitantes.

O orçamento combinado das quatro províncias que sustentam Angola, em termos de exportações, nomeadamente Cabinda e Zaire (petróleo), Lunda-Norte e Lunda-Sul (diamantes), é duas vezes inferior a uma conta bancária de São Vicente, engordada ironicamente com o dinheiro do petróleo. Juntas, essas províncias recebem o equivalente a 414,5 milhões de dólares no papel, para um universo de três milhões de habitantes.

Há mais um termo comparativo: o saque de São Vicente ultrapassa o orçamento equivalente a 734 milhões de dólares destinado a Luanda, que tem uma população à volta dos 10 milhões de habitantes.

“Descarados e obscenos”

A 7 Julho de 2017, a então deputada do MPLA, Irene Neto, concedeu uma entrevista ao jornalista Nok Nogueira, para o Novo Jornal, na qual condenava os “desvios monumentais, descarados e obscenos” dos recursos do país durante a longeva presidência de José Eduardo dos Santos.

Irene Neto afastou, na altura, qualquer ideia de que a família Neto tivesse beneficiado desse período “obsceno”. “Atribuem-nos a Fundação Sagrada Esperança, bairros, prédios, etc. Claro que tudo isso não passa de mentiras, mitos e ambiguidades, propositadas ou não. A nossa família nunca esteve envolvida em práticas imorais ou ilegais. Temos noção do que somos. Sempre existiu um distanciamento, é verdade”, declarou a política.

Membro do Bureau Político do MPLA, Irene Neto criticou ainda a impunidade então reinante que permitiu o estabelecimento de “uma burguesia nacional escolhida a dedo e não por mérito próprio”. Segundo a ex-deputada do MPLA, essa burguesia fez-se “com a delapidação do erário público para a ‘acumulação primitiva de capital’ de alguns eleitos em detrimento da maioria”.

Demolidora, a filha de Agostinho Neto insurgiu-se contra a “galopante ganância e voracidade de velhos e jovens ambiciosos, deslumbrados pelo reluzir das pratas e de mil oiros”.

Sonangol, o coração do saque

A Sonangol funcionou como epicentro da acumulação primitiva de capital em Angola. Manuel Vicente foi o principal gestor nesse período.

Logo, Manuel Vicente deve ser convidado a contar tudo o que sabe, nomeadamente sobre o caso do grupo AAA e Carlos Manuel de São Vicente. Cem anos de perdão em troca de cem anos de confissão!

Casos como os deste polvo revelam que o poder político em Angola e as oligarquias por si criadas traíram o povo angolano. O polvo Carlos Manuel de São Vicente só existe porque tem águas propícias por onde se espraiar.

O povo angolano tem direito à verdade sobre este caso, e tem direito à justiça sobre o saque de uma monumental fortuna que lhe pertence. A Irene Neto cabe um gesto honroso e simbólico de renúncia da sua condição de membro do Bureau Político do MPLA. Assim, Irene Neto, tão convicta das suas ideias éticas, daria o exemplo, para que muitos predadores acoitados nas estruturas do MPLA viessem a abandonar voluntariamente a vida político-partidária activa. Deste modo, permitiriam a regeneração da vida política no país. Angola merece melhor!

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