Sonangol: O Epicentro da Pilhagem de São Vicente – Parte 1

Entre 2011 e 2015, a média anual do orçamento combinado das operadoras petrolíferas em Angola oscilou entre os 30 e os 35 mil milhões de dólares. Desse montante, entravam pouco mais de mil milhões de dólares anuais no sistema bancário nacional para pagamentos aos prestadores de serviço locais. Um dos principais beneficiários nacionais desse valor era a AAA Seguros S.A, que detinha o monopólio de seguros das operações petrolíferas em Angola.

Ao longo de dez anos, até 2016, quando o referido monopólio foi revogado, estimam os especialistas que a AAA Seguros tenha transferido mais de quatro mil milhões de dólares para o exterior do país, não contabilizando as operações não registadas no sistema financeiro nacional.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu, a 8 de Setembro passado, um mandado de apreensão dos edifícios AAA, hotéis IU e IKA, construídos por todo o país, bem como da participação de 49 por cento das acções no Standard Bank. Este património foi arrestado por indícios de crimes de peculato, participação económica em negócio, tráfico de influência e branqueamento de capitais do seu proprietário. Quem é ele? Carlos Manuel de São Vicente, que se tornou dono e senhor do grupo AAA e presidente do Conselho de Administração da teia de empresas criadas com as mesmas iniciais, em Angola, em Londres e no paraíso fiscal das Bermudas.

Esta medida, aparentemente tardia, surge na sequência do congelamento de 900 milhões de dólares na Suíça, pertencentes a Carlos Manuel de São Vicente e a sua esposa Irene Alexandra Neto, membro do Bureau Político do MPLA.

O acórdão suíço refere que o circuito dos fundos começava na AAA Seguros, inicialmente criada pela Sonangol, que se obrigava somente com a assinatura de Carlos Manuel de São Vicente. Esta empresa transferia fundos milionários para uma outra, denominada AAA International Lda., criada no paraíso fiscal das Bermudas, com a participação accionista da Sonangol. A partir desta e, mais uma vez, apenas com a sua assinatura, Carlos Manuel de São Vicente transferia o dinheiro para a sua conta pessoal na Suíça. As autoridades suíças consideraram pouco habitual que o presidente do Conselho de Administração de uma empresa dispusesse para si próprio de fundos tão avultados, usando somente a sua assinatura.

O Maka Angola tem estado a investigar o escândalo a partir da sua origem, Angola, com vista a que o caso seja conhecido por todos os angolanos, que até à data têm apenas tomado conhecimento dos factos arrolados pela justiça suíça.

Basicamente, o grupo AAA detinha o monopólio de seguros das operações petrolíferas em Angola. As multinacionais pagavam à AAA Seguros, que por sua vez transferia 85 por cento dos fundos – como pagamentos de resseguro – para um conjunto de quatro empresas-fantasma, sediadas em paraísos fiscais. Essas empresas são: AAA Reinsurance S.A., AAA Insurance & Reinsurance Brokers Ltd., AAA Risk Solutions Ltd. e AAA Insurance Ltd. Só no período de 2009 a 2010, o mais recuado de que temos registo, as transferências ultrapassaram os 370 milhões de dólares, para além dos pagamentos feitos directamente no exterior do país.

Em 2015, as transferências da AAA Seguros para as referidas offshores, justificadas enquanto operações de resseguro, ascendeu a 800 milhões de dólares, conforme documentos em posse do Maka Angola. Dessas operações, excluem-se os valores pagos pelas multinacionais no exterior do país.

Segundo informações na posse deste portal, a Sonangol funcionou como centro de operações do monumental esquema de saque protagonizado por São Vicente, e com o apoio e suporte da presidência da República. Deslindamos agora também a participação do sistema financeiro nacional, com destaque para o Banco Nacional de Angola (BNA), o Banco Internacional de Comércio (BIC) e o Banco Africano de Investimentos (BAI), no qual a Sonangol é o principal accionista.

Sonangol, a empresa pública que funcionou como centro de operações do esquema de saque protagonizado por São Vicente

Além de Carlos Manuel de São Vicente, também Irene Alexandra da Silva Neto, sua esposa, viu congelada pelas autoridades suíças a sua conta bancária, com n.º 1047929, aberta no banco helvético SYZ, S.A. A 7 de Dezembro de 2018, o Ministério Público de Genebra emitiu a ordem de congelamento. Irene Neto, como se sabe, é a filha do primeiro presidente da República de Angola, Agostinho Neto, e até 2017 foi deputada do MPLA à Assembleia Nacional.

Esta informação consta no acórdão proferido a 9 de Julho de 2020, pelos juízes Corinne Chappuis Bugnon, Christian Coquoz e Alix Francotte Conus, do Tribunal de Recurso de Genebra, no âmbito do processo por branqueamento de capitais contra Carlos Manuel de São Vicente.

A criação do polvo AAA

A miríade de empresas criadas com as iniciais AAA, em Angola, em Londres e no paraíso fiscal das Bermudas assemelha-se a um polvo cuja cabeça é indubitavelmente Carlos Manuel de São Vicente. Para se compreender como os seus tentáculos funcionavam, este texto esmiúça, por um lado, como se estabeleceram as empresas AAA em Angola, num total de cinco, assim como em Londres e nas Bermudas, também com cinco criações.

O “estágio” de São Vicente

Comecemos antes pelo “estágio” de Carlos Manuel de São Vicente, em 1997, no sector dos fundos de pensões, quando foi indicado pela Fundação Sagrada Esperança, do MPLA, como um dos cinco administradores da Gestão de Fundos S.A. Segundo as nossas fontes, São Vicente rapidamente se incompatibilizou com o então presidente do Conselho de Administração da Gestão de Fundos, Isaac Maria dos Anjos, porque considerava irrisória a sua remuneração de cinco mil dólares mensais. De acordo com gestores que privavam com ele nessa altura, São Vicente exigia um salário mensal de 12 mil dólares.

Como quadro da casa, foi bater à porta da Sonangol E.P., pela mão do então ministro dos Petróleos, Desidério Costa, onde o acomodaram como director de Gestão e Risco da petrolífera nacional.

O polvo em Angola

A 5 e 6 de Julho de 2000, a Sonangol E.P. criou cinco empresas – AAA Serviços Financeiros Lda., AAA Pensões, AAA Corretores de Seguros, AAA Seguros Lda. e AAA Serviços de Risco Lda. –, assumindo o capital integral das mesmas.

Esse conjunto de empresas foi criado com o objectivo de monopolizar o negócio de seguros das operações petrolíferas em Angola. Desse modo, de forma especializada, o grupo AAA cobria a gestão de risco, venda de seguros, gestão de fundos de pensão, seguro e co-seguro. A este grupo juntou-se a AAA (Angola) Reinsurance Ltd., na qualidade de re-seguradora, registada antes no paraíso fiscal das Bermudas, a 1 de Abril de 1999. Todas estas empresas eram subsidiárias da AAA Serviços Financeiros Lda. E Carlos Manuel de São Vicente assumiu a direcção do grupo, ao mesmo tempo que se mantinha como empregado da Sonangol.

A 26 de Fevereiro de 2001, São Vicente concedeu uma entrevista à World Investment News, na qualidade de director de Gestão e Risco da Sonangol E.P., para falar sobre o lançamento da AAA Seguros S.A., da qual era cumulativamente presidente do Conselho de Administração.

Nesta entrevista, São Vicente anunciou para breve a abertura de 30 por cento do capital do grupo AAA a um investidor estrangeiro.

Ao longo dos anos, a AAA Seguros, responsável directa pelo monopólio dos contratos de seguro das operações petrolíferas no país, sofreu várias metamorfoses na sua estrutura accionista. Importa salientar que, a 14 de Janeiro de 2005, o então PCA da Sonangol, Manuel Domingos Vicente, cedeu 70 por cento das acções na AAA Serviços Financeiros à offshore AAA (Angola) Investors, que tinha como mandatário o conhecido advogado José Fernando Faria de Bastos.

A 11 de Junho de 2009, São Vicente aumentou a confusão, criando a AAA Activos Lda., integralmente detida por si. Em seguida, menos de um ano depois, a 13 de Abril de 2010, registou-se a alteração da estrutura accionista da AAA Activos. A AAA International, registada nas Bermudas e, nessa altura, propriedade exclusiva de São Vicente, assumiu o controlo total da AAA Activos, com uma quota de 99,91 por cento.

Ou seja, ao cabo de dois anos, a AAA Activos tornou-se detentora de 88 por cento do capital da AAA Seguros, enquanto a Sonangol se contentou com 10 por cento e outros dois por cento foram divididos por Carlos Manuel de São Vicente e a AAA Pensões. Foi assim que o “polvo” se tornou, como diriam os portugueses, o dono disto tudo: as (três) AAA.

Célere na diversificação, em Outubro de 2012, Carlos São Vicente, como proprietário único da AAA Activos, passou a integrar a estrutura accionista do Standard Bank em Angola, com 49 por cento do capital, após ter participado do aumento de capital, para 100 milhões de dólares, da referida instituição financeira. O Standar Bank, da África do Sul, é o maior banco em África. Esta é uma participação hiperqualificada e que mereceu incompreensivelmente autorização do BNA, sem que se tivesse questionado a proveniência de fundos de um gestor de uma empresa que detinha capitais públicos.

O Standard Bank Group, da África do Sul, é o accionista maioritário, sendo proprietário de 51 por cento. Essa estrutura accionista mantém-se até à data, conforme os relatórios e contas do Standard Bank.

De forma enganosa, o Relatório de Gestão e Contas da Sonangol de 2013 refere que a participação da petrolífera na AAA havia caído para 30 por cento. No ano seguinte, a petrolífera retirou à AAA a gestão do Plano de Pensões de Sonangol e confiou-o à novel Sonangol Vida, que ainda não tinha iniciado actividade. Nos relatórios anuais seguintes, a Sonangol omite a sua participação na AAA.

Estas várias modificações da estrutura accionista não revelam quanto lucrou a Sonangol com a venda da sua participação. Uma informação que também não se encontra nos relatórios dos auditores é a que diz respeito aos valores encaixados pelas vendas dessas acções.

Como adiante se explicará, a AAA Seguros tinha acumulado, nas suas contas, perto de 500 milhões de dólares. Como compreender a decisão da Sonangol em ceder, praticamente de borla e a um ex-funcionário seu, as suas acções numa empresa com tanto dinheiro?

O Maka Angola sabe que, há dias, o ex-presidente José Eduardo dos Santos se manifestou “chocado” com o facto de o Grupo AAA pertencer exclusivamente a São Vicente. Julgava que o mesmo continuava a ser controlado pela Sonangol.

Fontes fidedignas contactadas por este portal explicam que, no início, São Vicente deveria ter servido também como testa-de-ferro para outras figuras, mas “terá dado o golpe aos outros e ficado com tudo”.

São Vicente já manifestou publicamente, através do Novo Jornal, o seu silêncio sobre o caso. “Neste momento, não posso fazer declarações porque o processo está em curso e há que respeitar o segredo de justiça e o segredo bancário”, respondeu, por e-mail, ao jornal.

A segunda e terceira partes desta investigação retomarão o assunto. Amanhã contextualizaremos a sangria de fundos protagonizada por São Vicente, em particular de 2010 a 2015, o período louco das divisas, em que saiu das reservas internacionais um total de 101 mil milhões de dólares, ou seja 20,2 mil milhões de dólares anuais. Só em 2015,  já com o aperto das divisas, a AAA Seguros S.A. de São Vicente transferiu cerca de 800 milhões de dólares para o seu paraíso fiscal.

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