O Estado da Saúde e o Berbequim de Pedreiro
Vários especialistas têm chamado a atenção para o facto de a pandemia do novo coronavírus poder ter sido aproveitada para reforçar devidamente o Sistema Nacional de Saúde em Angola. Em vez disso, acontecem situações como a do uso de um berbequim de pedreiro para cirurgias ortopédicas no Hospital Geral do Moxico, unidade de saúde considerada pelo governador Muandumba uma das melhores do mundo!
O covid-19 transferiu o Ministério da Saúde para a primeira linha das acções do governo. Este ministério passou, na prática, a ser o mais importante no funcionamento do governo e no processo de tomada de decisões presidenciais.
Apesar de ser letal e invisível, o covid-19 não ganha a corrida das doenças no país, já que a dianteira é ocupada por endemias como a malária e a tuberculose, que só no primeiro trimestre deste ano foram responsáveis por 25 por cento do total de mortes no país. Trata-se de dados oficiais.
Importa, por isso, responder a uma questão essencial: qual é a diferença entre um angolano que morre de malária e outro que morre de covid-19? Há alguma diferença na morte? Se o objectivo primordial da acção de combate ao covid-19 é salvar vidas, então devemos reflectir profundamente sobre o Estado actual da saúde no país.
Multiplicam-se as queixas, por parte de médicos reputados, segundo as quais a ministra da Saúde, Sílvia Lutucuta, tudo tem feito para agir fora do sistema. É notório que há um grande estímulo a projectos visíveis e extremamente dispendiosos, mas que têm pouco impacto no sistema de saúde. O exemplo maior é o Condomínio de Calumbo, adquirido por 24 milhões de dólares e sobre o qual escreveremos oportunamente.
No momento em que mais é premente a operacionalidade dos serviços de saúde, eles estão a funcionar a meio gás. A par dos investimentos avultados em grandes projectos de construção, é clara a negligência do serviço público de saúde.
Podemos dar exemplos que ajudem a compreender a situação actual dos hospitais angolanos, mostrando que os gastos no combate ao covid-19 não devem servir para esconder o actual estado da saúde.
A 27 de Junho passado, o presidente João Lourenço visitou o novo banco de urgência do Hospital Pediátrico de Luanda, e falou bem: trata-se de uma “unidade [que] representa um passo importante para a resolução dos problemas de saúde da população, em particular das nossas crianças”.
Mas, ali mesmo no Hospital Pediátrico, é escondida de forma cavilosa uma realidade preocupante, que não deve ter chegado ao conhecimento do presidente Lourenço.
Trata-se de um hospital com duas salas de bloco operatório inoperantes há mais de dois anos. Fizeram-se obras adicionais que, segundo fontes locais, causaram uma avaria no sistema de climatização. Até à data, ainda não foi reparado este sistema nem se adquiriram os filtros biológicos adequados. Devido a esta situação, há uma lista de espera para cirurgias electivas que se estende até 2022. O aumento de casos de febre tifóide, outra endemia em Angola, tem sobrecarregado a única sala de cirurgias, na qual se realizam diariamente mais de sete operações. Segundo investigações deste portal, as crianças são levadas para o hospital já com complicações abdominais graves, consequência da febre tifóide.
Neste mesmo hospital, a ministra Sílvia Lutucuta tomou recentemente a decisão de encerrar uma das três unidades de cuidados intermédios, destinada aos prematuros e bebés com malformações congénitas. Em seu lugar, montou uma unidade de hemodiálise.
Um pediatra experiente explica que, no que diz respeito a internamentos, raramente o hospital recebe crianças com insuficiência renal crónica, embora sejam recorrentes os casos de bebés que nascem prematuramente ou com malformações congénitas. Logo, a hemodiálise não é, de todo, uma prioridade, de modo que a montagem desse centro nesta unidade pediátrica não se justifica.
Quando se estraga de um lado, de forma negligente, e se remenda à toa do outro podemos falar em melhorias? Podemos usar o famoso jargão segundo o qual “o governo está a fazer um grande esforço?”
Basta dar um salto ao leste do país, para termos ao alcance a radiografia de um hospital que mais parece um conto de ficção.
Muito recentemente, a 27 de Julho, a direcção do Hospital Geral do Moxico distribuiu 10 máscaras faciais por 30 médicos, para o período de uma semana, como “esforço governamental” na tomada de medidas de biossegurança em tempo de covid-19.
É de notar que o Hospital Geral do Moxico tem boa dotação orçamental. O serviço de ortopedia tem usado – e isto é verdade – um berbequim de pedreiro para cirurgias ortopédicas. Há duas semanas, o governador Gonçalves Muandumba afirmou que o referido hospital “é o mais limpo de Angola e está entre os melhores do mundo”. Muandumba proferiu esta afirmação na reunião dos Comités de Especialidade do MPLA, que reuniu cerca de 100 participantes. Muito bem: resta notar que, nesse hospital que se conta entre os melhores do mundo, o berbequim de pedreiro também serve, desde 2015, para cirurgias maxilo-faciais. Há mandíbulas e outros ossos da cabeça a serem fixados com um instrumento de construção civil.
As investigações acerca deste hospital, realizadas pelo Maka Angola nas últimas semanas, confirmam que “o material cirúrgico usado no bloco de urgência e as compressas não são esterilizados”.
“Quando suturamos um ferido ou drenamos o abcesso de outro [pus], de seguida reutilizamos o material em outro paciente. Apenas passamos o material pela água da torneira”, relata um médico, fazendo mea culpa pelo receio de protestar contra tão indignas condições de trabalho.
“Os doentes com tuberculose activa são colocados em enfermarias, juntamente com outros que padecem de doenças não transmissíveis. Estamos a espalhar a hepatite B e o HIV através dessas práticas de uso de material sem esterilização”, conta o médico.
Há cerca de dois anos que, no Hospital Geral do Moxico, faltam reagentes para exames contrastados de estomatologia. Este serviço nem sequer dispõe de agulhas específicas para o tratamento de pacientes. De forma criativa, há três dias, o director-geral do hospital, Manuel Yaza Macano, providenciou um tablet para o Departamento de Imagiologia, porque há cerca de três anos que faltam películas (chapas de raio-X) para as radiografias dos pacientes. É assim que o médico consulta o raio-X e os pacientes podem fotografar directamente com os seus telemóveis.
Passemos rapidamente pelo Hospital Américo Boavida. Há mais de dois anos, o segundo hospital de referência do país tem o aparelho de endoscopia digestiva alta avariado. Há mais de um ano está avariado o aparelho de ecocardiograma para adultos.
Como afirma um médico deste hospital, “em qualquer país normal, o Banco de Urgência tem de ter um electrocardiógrafo, mas o Américo Boavida não tem. Aqui só há um no 4.º piso, na área de Cardiologia, e às noites é trancado. Se há uma suspeita de enfarte de miocárdio não há como consultar o paciente”.
Desde Novembro passado, há um aparelho de TAC (Tomografia Axial Computadorizada) para ser instalado. Segundo várias fontes hospitalares, até à data, passados nove meses, a direcção do hospital continua a “preparar as condições”. Recentemente, o director do hospital, José Agostinho Matamba afirmou publicamente que o hospital “tem todas as condições”.
Para não cansarmos os nossos leitores, continuaremos dentro de dias esta ronda investigativa pelos hospitais.
O presidente João Lourenço tem de demonstrar pulso e liderança no sector da saúde. A melhor via para que tenhamos um serviço de saúde prestável, no qual não se usem berbequins de pedreiro, é ouvir os profissionais de saúde e os pacientes, procurar consensos e servir o bem comum.
Cabe ao presidente criar um mecanismo de consulta pública sobre o sector da saúde. Precisa de receber contribuições válidas, de todos os quadrantes, que sirvam para estabelecer um plano funcional de saúde pública e de boa administração hospitalar.
João Lourenço tem de criar uma equipa multidisciplinar com quadros competentes em saúde pública e administração hospitalar e com sentimento de probidade. Só por essa via o presidente poderá demonstrar a sua sensibilidade e estratégia no sentido de garantir uma política de saúde inclusiva, verdadeiramente equilibrada, socialmente justa e humana.
Há cada vez mais cidadãos angolanos disponíveis para contribuir com o seu saber, e de forma voluntária, e com alguns com recursos para a prossecução de um serviço público de saúde melhor. A saúde é a prioridade e as nossas vidas não mais devem depender da vontade da ministra Lutucuta. Chega!
A saúde não pode esperar.