Os processos contra Isabel dos Santos em Angola

São três os processos conhecidos que foram publicamente instaurados pela Procuradoria-Geral (PGR) angolana contra Isabel dos Santos em Angola, abrangendo alguns seus associados, como o marido Sindika Dokolo e o gestor português Mário Leite da Silva.

O primeiro é o processo n.º 3301/2019-C, que consiste numa providência cautelar de arresto decretada em 23 de Dezembro de 2019 pelo Tribunal Provincial de Luanda. Essa decisão determinou o congelamento de vários direitos de Isabel dos Santos e seus associados em Angola, designadamente contas bancárias e participações em empresas como o BIC e a Unitel. Naturalmente, pela sua natureza, este processo deu origem a uma acção principal. É um processo de natureza cível, o que quer dizer que não se refere a crimes, nem terminará em prisão.

O segundo processo é de natureza criminal e está em segredo de justiça, razão pela qual pouco se sabe sobre ele. Aparentemente, foi instaurado na sequência das denúncias do então presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Carlos Saturnino, em Fevereiro de 2018. Não se sabe se envolve apenas as transferências que Isabel dos Santos fez nos últimos dias enquanto presidente do Conselho de Administração da Sonangol ou se tem um âmbito mais alargado.

O terceiro processo é o processo n.º 33/2020-A. Este processo é, também, uma providência cautelar cível que não investiga crimes nem dá origem a prisão. Neste caso, o Tribunal Provincial de Luanda decretou que o Banco BIC (em que Isabel dos Santos é accionista maioritária) ficava impedido de cobrar as prestações de um empréstimo concedido à SODIAM (empresa pública dos diamantes), que foi usado para financiar a compra da joalharia DeGrisogono pelo marido de Isabel, Sindika Dokolo.

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O facto de existirem vários processos, e não apenas um megaprocesso, significa que o Ministério Público angolano não cometeu o erro que o seu congénere português costuma praticar, que é de querer colocar todos os factos num grande processo. Esta metodologia faz com que o caso judicial se torne ingerível e a justiça nunca seja feita, nem a favor do Estado, nem a favor dos arguidos, que na prática são condenados a décadas de ostracismo (um misto de exílio, esquecimento e calúnia) – uma das penas mais pesadas na antiga Grécia. A divisão em processos variados adoptada pela magistratura angolana é preferível, pois permite, pelo menos em teoria, que a justiça avance rapidamente e não fique emaranhada num novelo que nunca deixa de se enredar.

Porém, como veremos de seguida, na prática não é assim. A análise individual de cada um dos processos contra Isabel dos Santos levanta várias questões. Começando pelo arresto inicial decretado em Dezembro de 2019 relativo aos bens de Isabel em Angola, por que razão o Ministério Público optou por um processo civil e não criminal? Um processo civil demora, geralmente, mais tempo em tribunal, e a decisão final não pode declarar os bens perdidos a favor do Estado; em caso de ganho de causa pela PGR angolana, Isabel será condenada a pagar mil e cento e trinta e seis milhões de dólares ao Estado; só depois, se não pagar esse valor, é que existirá uma execução, vendendo-se os bens dentro de um processo judicial ou podendo o Estado ficar com eles, de acordo com as normas de adjudicação desse processo de execução. Um processo civil destes poderá arrastar-se por dez anos, pelo que o objectivo de recuperar activos a curto prazo para o Estado não é alcançado.

Em contrapartida, o processo criminal contém várias disposições que permitem o congelamento de bens e direitos. Temos as apreensões previstas na Lei Reguladora de Revistas, Buscas e Apreensões. O artigo 14.º, que estabelece os requisitos para proceder a apreensões, designadamente a sua alínea f, é suficientemente elástico para permitir apreensões alargadas. A esta norma acrescem as normas da Lei das Medidas Cautelares, que prevêem a Caução Económica e o Arresto Preventivo. A isto tudo haverá ainda a adicionar as medidas cautelares abrangentes definidas pelo artigo 66.º da Lei de Combate ao Branqueamento de Capitais.

Quer isto dizer que o direito penal contempla inúmeras normas que teriam permitido os mesmos efeitos iniciais que o arresto decretado e que no fim implicariam, em caso de condenação, a perda efectiva dos bens a favor do Estado.

O problema de se optar pelo processo civil, além da maior morosidade e de o desfecho não ser a recuperação imediata de bens pelo Estado, é o âmbito da prova. No processo civil, a prova é mais estrita e obedece a critérios formais rigorosos, enquanto no processo criminal o importante é a “descoberta da verdade material”, o que implica uma maior amplitude nos meios de prova utilizados, nas investigações produzidas, no aprofundamento das questões.

Temos um exemplo destas limitações cíveis na fundamentação da decisão civil de Dezembro, que aliás se repetem na providência de Maio. Comecemos pelo primeiro caso. A juíza Henrizilda do Nascimento, ao decretar o arresto contra Isabel dos Santos e o marido, estriba tal decisão na existência de um crédito do Estado face a Isabel dos Santos num montante pouco superior a mil e cento e trinta e seis milhões de dólares. Concretamente, 1.136.996.825,56 USD. Aparentemente, este valor resulta de “vários negócios em que intervieram empresas do Estado e os requeridos [Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e Mário Leite da Silva]”. A questão é que os factos concretos apresentados na peça apenas permitem quantificar objectivamente cerca de 140 milhões de USD de prejuízos imputáveis a Isabel dos Santos e associados. Há um salto factual dos 140 milhões para os 1136 milhões que não surge cabalmente explicitado na decisão. A mesma dificuldade se encontra na decisão de 11 de Maio, que também é cível. Aí, a juíza Regina Sousa  declara que Isabel dos Santos deve cerca de 5 mil milhões de USD, especificamente, 4.920.324.358,56 USD. Contudo, mais uma vez, a factualidade concreta apenas permite discernir um prejuízo quantificado de 436 milhões de dólares. Isto significa que estes dois processos cíveis apresentam lacunas na narrativa factual que lhes podem ser fatais no futuro, e que só a fundamentação penal para obtenção de prova poderia colmatar. No entanto, esta última peça da juíza Regina Sousa apresenta uma fundamentação globalmente exaustiva, não hesitando em apodar Isabel dos Santos de “déspota” e abrindo caminho para que a PGR angolana tome medidas penais definitivas face a Isabel dos Santos. Portanto, daqui é possível criar uma plataforma que teria o seu adequado desenvolvimento na área criminal.

Mesmo tentando evitar um megaprocesso criminal, é fundamental justificar cabalmente os valores apresentados, sobretudo quando têm a magnitude de 5 mil milhões. Tal não parece estar a ser possível lançando mão de processos cíveis. Dependerá do processo criminal da PGR aprofundar e explicitar as várias questões afloradas no cível.

No entanto, no processo criminal passa-se algo de surpreendente e letárgico. Parece que foi em Agosto de 2018 que a Procuradoria-Geral da República tentou notificar Isabel dos Santos para prestar declarações no inquérito penal que lhe era dirigido. Segundo a história que circula e nunca desmentida, Isabel ter-se-á recusado a receber a notificação e de imediato seguiu para casa do pai, de onde foi para o aeroporto, nunca mais tendo voltado a Luanda. Mais tarde, em Janeiro de 2020, o procurador-geral, Pitta Grós, deslocou-se a Lisboa para solicitar a notificação de Isabel pelas autoridades portuguesas. Aparentemente, até agora (Maio de 2020) ninguém conseguiu notificá-la. Assim, temos um processo criminal em que se anda a tentar notificar Isabel dos Santos desde Agosto de 2018 e em que não há nenhuma acusação produzida. Sabe-se que a cooperação judiciária internacional, esteja ou não prevista em tratados, permite que Angola tente notificar Isabel em qualquer parte do mundo, designadamente utilizando os mecanismos da Interpol. Por isso, não se entende por que razão nada de verdadeiramente incisivo tenha sido feito para a notificar, com o processo languescente, à espera de Isabel.

O desenvolvimento dos elementos carreados no processo decidido a 11 de Maio pela juíza Regina Sousa permitem que a PGR tome medidas rápidas. Ou a notificam utilizando os métodos do direito internacional criminal, como a emissão de um mandado de captura com efeitos internacionais, ou encerram a parte inicial do processo, seja acusando-a e activando os meios internacionais para a deter, seja arquivando o processo, como prevê o Código do Processo Penal.

Tendo em conta os três processos em curso, concluímos que a estratégia legal adoptada pelo Estado angolano contra Isabel dos Santos tem duas vantagens: não criou um megaprocesso e tem desenvolvido os processos a partir de Luanda, não caindo na armadilha do caso Jean-Claude Bastos de Morais, em que a PGR foi discutir temas angolanos insondáveis para os ingleses num tribunal de Londres.

Contudo, os processos apresentam várias desvantagens. Ao optar por mecanismos do direito civil, o Estado ficou refém das limitações da prova e da morosidade do processo declarativo. Entretanto, no processo criminal, parece não querer tomar as medidas de aceleramento do processo que se impõem: lançar uma busca internacional de Isabel dos Santos para a notificar, interrogar e eventualmente aplicar medidas cautelares.

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Há um erro de base nesta perspectiva de combate à corrupção que é o da opção pelos meios comuns. A lei angolana é uma manta de retalhos da velha lei portuguesa, com actualizações que ora são novas cópias da lei portuguesa, ora são fatos à medida das camadas dirigentes. Além disso, o sistema judicial é lento e desorganizado.

Ao combater a corrupção com leis velhas, contraditórias e confusas, usando uma logística também antiquada e pouco adaptada à dinâmica do mundo contemporâneo dos negócios, o Estado angolano não conquistará os seus intentos. Arrisca-se a andar atrás de Isabel anos a fio, sem consequências robustas para os seus objectivos, e Isabel pode muito bem acabar por ser considerada vítima de uma justiça que não funciona.

Sempre se defendeu que o combate à corrupção, fenómeno que capturou o Estado angolano e a sua maquinaria, não poderia ser feito por meios comuns, exigindo outra estrutura. Era necessária uma nova estrutura legal. Deveriam ter surgido novos órgãos focados e dinâmicos para investigar e acusar os casos de corrupção, secções especializadas dos tribunais para os julgar, e leis sistemáticas para serem aplicadas, revendo-se, entre outros, as possibilidades de colaboração premiada (era mais interessante ter o gestor de Isabel dos Santos a colaborar com as investigações policiais do que a ser acusado…) e os acordos com chancela judicial. Talvez tivesse até sido, ou ainda seja, mais operacional e transparente fazer uma espécie de julgamento de Nuremberga sobre o passado da corrupção e resolver os grandes casos de uma só vez. Obviamente, isso exigiria leis próprias e uma vontade política metódica e constante, mas o momento histórico talvez exigisse ou exija isso mesmo.

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