Injustiça: as Medidas de Coacção de Royi Atia e Tal Eliaz

Por estes dias, recorrendo a uma liberdade de expressão até aqui inédita, a vice-presidente da Associação dos Juízes de Angola (AJA), juíza Tatiana Aço, afirmou que os “magistrados admitem terem sido forçados a tomar decisões injustas”. A magistrada referia-se especificamente a uma norma do Código do Processo Civil sobre a restituição provisória da posse, que tem levado a entregar determinados terrenos a pessoas poderosas e ricas, retirando-os dos seus proprietários pobres.

A verdade é que o balanço destes anos longos de exercício do poder judicial aponta mais para a injustiça do que para a justiça. Os juízes actuaram, de um modo geral, como agentes das classes dominantes de Angola, constituindo-se como mais um instrumento do partido no poder e dos seus dirigentes.

Há um caso que temos vindo a acompanhar desde 2019, e que espelha bem essas injustiças e arbitrariedades judiciais. Trata-se do processo que opõe o conhecido deputado do MPLA Jú Martins ao israelita Dudik Hazan respeitante a uma história que envolve um crédito de 30 milhões de dólares no Banco Sol, destinado a financiar a Starlife Lda., um negócio de sal, farinha e óleo de peixe.

Este caso deu origem a um processo cível, mais exactamente a uma providência cautelar de restituição provisória da posse da Salina Macaca e dos móveis que se encontram no interior desta, e ainda a um processo-crime.

No processo cível, a 21 de Março de 2019, a 1.ª secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, na pessoa da juíza conselheira Anabela Vidinhas como relatora, e com Molares de Abril e Manuel Dias da Silva como adjuntos, acordou em revogar uma decisão de primeira instância no processo que opunha Jú Martins a Dudik Hazan. A primeira instância decretara uma restituição provisória da posse da salina a favor do deputado do MPLA Jú Martins. Foi essa decisão que foi revogada num acórdão muito duro do Tribunal Supremo, dando ganho de causa ao israelita.

Em relação ao processo-crime, o Tribunal Supremo ainda não se pronunciou, mas corre um recurso da decisão de primeira instância tomada a 7 de Março de 2019, pelo juiz Milton Cafoloma, da 2.ª secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal de Benguela, que condenou Royi Atia e Tal Eliaz, colaboradores israelitas de Dudik Hazan, a penas superiores a oito anos de prisão efectiva. Dudik Hazan só não foi detido por se encontrar fora do país.

Ora, é justamente sobre estes dois funcionários, Royi Atia e Tal Eliaz, que recai a injustiça a que nos referimos no início. No âmbito do processo-crime, a 6 de Março de 2017, o procurador Napoleão Jesus Monteiro aplicou às referidas pessoas as seguintes medidas de coacção:

  • Apresentação quinzenal na Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP);
  • Não sair de Luanda e Angola sem prévia autorização da Procuradoria-Geral da República (PGR);
  • Não mudar de residência ou local de trabalho sem prévia autorização da PGR.

Passado este tempo todo, mais de dois anos, mantêm-se as mesmas medidas de coacção.

Ora, facilmente se compreende que estamos a falar de duas pessoas estrangeiras que, com estas condicionantes, ficam impedidas de se movimentar e de levar a sua vida de forma adequada.

As medidas de coacção fazem sentido ao longo de um período restrito e quando há perigo comprovado. Nunca é demais enfatizar quais são as condições em que se devem aplicar medidas de coacção limitadoras da liberdade. Qualquer medida de coacção, excepto o termo de identidade e residência, que é automático para qualquer arguido, só deve ser aplicada quando haja fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação na instrução do processo ou perigo de continuação da actividade criminosa ou perturbação da tranquilidade pública (artigo 19.º, n.º 1 da Lei das Medidas Cautelares).

No caso em apreço, o perigo de perturbação da instrução não existe, pois essa fase já passou há muito, e o mesmo acontece com a alegada periculosidade de continuação da actividade criminosa, dado que os referidos israelitas não mantêm qualquer contacto com o suposto objecto do crime. Resta o perigo de fuga, uma vez que fuga não houve. Pode-se sempre dizer que cidadãos estrangeiros têm maiores possibilidades de fugir. Isso será verdade, mas também é verdade que já estão há dois anos nesta situação e não se verificou nenhum ensaio de fuga.

Assim sendo, não se verificam os pressupostos concretos para a manutenção de medidas de coacção tão rígidas e limitadoras da vida quotidiana. Muito simplesmente, é necessário e premente aligeirar esta coacção.

Claro que, para a avaliação global do caso, tem relevo a decisão cível do Tribunal Supremo que deu razão aos israelitas, colocando em crise toda a narrativa apresentada pelo deputado Jú Martins e as conclusões do juiz Milton Cafoloma. A acusação aos israelitas dificilmente resistirá ao crivo de um Tribunal Supremo consciente e racional.

Foi com base neste pressuposto que os advogados dos israelitas solicitaram a modificação das medidas de coacção, enviando um requerimento à PGR. A PGR na pessoa do vice-procurador geral Pedro da Mota Liz, indeferiu, a 19 de Março passado, o requerimento, alegando que, nesta fase processual, competia ao tribunal e não à PGR modificar as medidas de coacção. De facto, é o que resulta da conjugação dos artigos 20.º e 23.º da Lei das Medidas Cautelares. Contudo, atendendo ao princípio da colaboração processual e ao facto de estarem em causa direitos fundamentais, por razões de economia processual, não teria sido pior que o vice-procurador geral tivesse remetido o requerimento para o Tribunal Supremo.

A necessidade de rever as medidas de coacção, que têm de obedecer aos princípios de necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade (artigo 18.º da Lei das Medidas Cautelares), torna-se agora mais ingente, atendendo às providências que estão a ser tomadas por via do COVID-19. Uma orientação do procurador-geral da República determina que sejam remetidos a liberdade provisória todas as situações de prisão preventiva susceptíveis de o serem. Uma revisão das medidas mais gravosas de coacção impõe necessariamente, por razões de igualdade e proporcionalidade, a revisão das outras medidas.

Por todos estes motivos, é de apelar ao sentido de justiça dos magistrados e proceder à revisão das medidas de coacção aplicadas a Royi Atia e Tal Eliaz.

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