O Canto da Sereia de João Lourenço no Parlamento Europeu

Os eurodeputados aplaudiram-no de pé, Ana Gomes disparou twitters elogiosos. A primeira visita de João Lourenço ao Parlamento Europeu parece ter sido um sucesso.

Quem pode não concordar com o discurso proferido pelo presidente de Angola?

Ora, quem escreve estas linhas não concorda, e não se deixa convencer por este bem montado exercício de relações públicas.

O discurso de João Lourenço tem duas partes essenciais: uma primeira em que apresenta uma narrativa sobre a história recente de Angola desde 2002. Nessa narrativa, Lourenço atribui todos os males de Angola à guerra, à crise económica e financeira internacional, e à queda do preço do petróleo no mercado mundial. Isto quer dizer, segundo o presidente, que todo o atraso angolano tem origem em factores externos à liderança política do país. Estamos portanto perante uma verdadeira mistificação, que logo é desmascarada pelo próprio Lourenço, quando afirma que Angola se encontra numa fase de transição e que ele próprio empreende uma cruzada contra a corrupção e a impunidade. Ora, se todos os males angolanos fossem estrangeiros, não seria necessária nenhuma transição e nenhuma cruzada.

João Lourenço sabe, como nós sabemos, que o partido que o elegeu e que nos últimos decénios esteve sob a batuta de José Eduardo dos Santos foi o grande responsável pelo estado inane a que Angola chegou. E devia saber que, enquanto não enfrentar o passado de forma aberta e crítica, não será capaz de construir um presente honesto e que garanta um desenvolvimento sustentado.

Acerca do presente, João Lourenço desdobrou-se em anúncios e promessas. Um novo dia democrático e propício aos negócios brilhará em Angola, diz ele.

O presidente da República vangloriou-se da lei de repatriamento de capitais, que na verdade é uma lei de branqueamento de capitais, mas esqueceu-se de que nada fez para corrigir um erro grave da lei da probidade, que em todo o seu articulado não menciona a corrupção nem explicita o tráfico de influências.

Sejamos claros: não se combate a corrupção com discursos políticos, mas sim com reformas sérias na legislação, no poder judicial, na administração pública. Não existe uma única reforma profunda nas instituições do Estado. No poder judicial, tão conivente com os desmandos de José Eduardo dos Santos, procedeu-se a uma mera dança de cadeiras, em que todos no final ficaram sentados em novas cadeiras estofadas. Ninguém saiu.

O aspecto mais interessante são as suas palavras sobre o Porto do Dande. Afirmou Lourenço que “foram anulados contratos bilionários com a construção e gestão de importantes infra-estruturas públicas, caso do Porto da Barra do Dande, por não se terem respeitado os mais elementares princípios da transparência e da concorrência”.

Esta referência convida a uma reflexão dupla, mais uma vez com implicações no passado e no presente. Se houve contratos adjudicados que não respeitaram a lei, além de os anular, o presidente deveria responsabilizar aqueles que praticaram as ilegalidades. Não faz sentido denunciar, exonerar e anular, mas nada fazer de concreto em relação aos prevaricadores. O sinal que se transmite é de puro arbítrio, e não de cumprimento das normas jurídicas. Em relação ao presente e ao futuro, João Lourenço assumiu um compromisso público de pôr em marcha um concurso para o novo contrato do Porto do Dande, com regras competitivas e transparentes. Vamos estar atentos e ver quem ganha esse concurso, e como.

Também foi interessante a parte acerca dos diamantes. Aí, João Lourenço declarou que foi “aprovado em Conselho de Ministros o novo modelo de comercialização dos diamantes, que acaba com os chamados clientes preferenciais, por outras palavras, privilegiados, que tinham o monopólio do negócio em detrimento das empresas produtoras e até da própria concessionária, a ENDIAMA. Acreditamos que com esta medida veremos em breve o regresso das grandes empresas multinacionais do sector, quer das produtoras quer das de comércio e de lapidação de diamantes”.

Provavelmente, haverá aqui eco do exaustivo labor efectuado por David Renous, empenhado na denúncia das “engenharias” utilizadas por Isabel dos Santos e seus associados para roubarem o Estado angolano no comércio dos diamantes, recentemente divulgado em conferência de imprensa no Parlamento Europeu, em conjunto com Ana Gomes.

O discurso de João Lourenço apresenta uma vantagem, todavia: produziu uma checklist com que poderemos confrontá-lo no futuro. A partir de agora, as promessas de João Lourenço são claras e mundiais:
– Democracia e respeito pelos direitos fundamentais em Angola;
– Crescimento económico num modelo de mercado livre;
– Transparência nas adjudicações de contratos públicos;
– Combate eficaz e com resultados à corrupção.

Quem conhece a realidade que continua vigente em Angola, onde continuam as detenções arbitrárias e a tortura policial, e onde a perseguição legal à liberdade de expressão é um dado permanente, não pode senão ter sérias e grandes dúvidas sobre estas promessas feitas num dia de Verão europeu.

Uma nota final sobre Rafael Marques. Parece que Ana Gomes terá perguntado a João Lourenço, à saída, sobre este caso de assédio inaceitável à liberdade de expressão, ao que o presidente encolheu os ombros. Não admira que Rafael Marques seja absolvido, ou então condenado a uma pena diminuta. Tal servirá para fazer o “número Paulo de Carvalho”: Rafael Marques não foi assassinado pelo regime angolano? Então, esta não é uma ditadura, é uma democracia. Desta vez dirão: Rafael Marques foi absolvido (ou condenado a uma pequena multa), logo Angola é uma democracia com poder judicial independente. Esquecem-se de que Paulo de Carvalho proferiu este fantástico raciocínio na Fundação Mário Soares. Alguém lhe poderia ter lembrado: Mário Soares não foi assassinado por Salazar? Então Salazar foi um democrata…

O problema deste processo contra Rafael Marques é o facto da sua mera existência e de ser promovido pelo Ministério Público, de quem João Lourenço é o responsável último.

O processo contra Rafael Marques contradiz toda a retórica “democrática” de Lourenço, o mesmo acontecendo com a “birra” que este fez com Portugal para “salvar a pele” a Manuel Vicente.
Estes são os dois exemplos da realidade de Lourenço: perseguição a jornalistas e denunciantes da corrupção, protecção dos mais corruptos no país.

Não nos iludamos. Façamos como o Ulisses de Homero, e não nos enganemos com os cantos das sereias de Capri agora personificados pela voz mais grossa de Lourenço. Amarremo-nos ao mastro, tapemos os ouvidos com cera, e naveguemos para longe destas águas de embuste e de perigo.

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