Tortura com Catana Faz Mais uma Vítima às Mãos do SIC

Mateus de Oliveira, 31 anos, fala de forma bastante pausada e com ar incrédulo. Mostra as suas costas vergastadas com 24 catanadas, às mãos de um responsável do Serviço de Investigação Criminal (SIC), destacado na 49.ª Esquadra, no Bairro do Nandó, município de Belas, em Luanda.

O jovem passou o Natal detido, e sofrendo com duas grandes feridas causadas pelo espancamento com a parte lateral da catana. A história da sua detenção é atribulada, mas a realidade do uso diário da catana, enquanto instrumento institucional de tortura pelo SIC, é de uma barbaridade indescritível.

Tudo começou a 17 de Dezembro, quando Mateus de Oliveira, actualmente a trabalhar por conta própria como técnico de frio, recebeu um telefonema de um suposto cliente interessado em comprar um aparelho de ar condicionado. Afirma que, de vez em quando, faz a intermediação de compra de aparelhos, cabendo-lhe, no acordo, o valor correspondente à montagem. Para o efeito, adianta, publicita os seus contactos nas redes sociais, como fornecedor de serviços de montagem e manutenção de aparelhos de ar condicionados, recorrendo a um cibercafé como “escritório” para os seus contactos.

“Expliquei ao indivíduo que domingo não era dia de trabalho e que poderíamos falar na segunda-feira. No dia seguinte, retornou a chamada de manhã cedo. Respondi ao suposto cliente que estava ocupado. Mas ele era persistente”, conta.

Para facilitar, deu o contacto do seu amigo Hélder Costa, para que acompanhasse o suposto cliente à loja de um maliano, ao lado do seu local de serviço.

Depois da hora do almoço, Mateus de Oliveira dirigiu-se ao “escritório”, o cibercafé onde Hélder Costa trabalha.

“O Hélder entrou em contacto com ele. Apareceu e, dois minutos depois, entraram seis ou sete elementos do SIC armados”, prossegue Mateus de Oliveira.

“Pegaram-nos e levaram-nos para a esquadra como burlões.””Para além dos dois amigos, os agentes do SIC detiveram também o dono do estabelecimento, conhecido apenas por Isidro, além de um outro funcionário do café, de nome Nelo, do segurança da empresa e de um maliano desconhecido que comprava um gerador no armazém ao lado.

Na 49.ª Esquadra, conhecida como Esquadra do Nandó, no bairro com o mesmo nome, os detidos foram submetidos a tortura para que confessassem o “crime”.

“Apanhei 25 catanadas das costas, pontapés nas costelas e no peito. Quem me bateu foi mesmo o chefe do SIC da 49.ª Esquadra, conhecido apenas por investigador Mussunda. Ele disse-me que me partiria as costelas até eu confessar o crime de que me acusavam.”

“O chefe do SIC batia-me com tanta raiva, que a catana partiu a lâmpada do tecto, com os movimentos brutos que ele fazia, e deixou marcas no tecto falso. Como se não bastasse, obrigou-me a pagar a lâmpada. Como eu não tinha dinheiro, o Sr. Isidro, dono do cibercafé, pagou os mil kwanzas ali mesmo.”

Por sua vez, Hélder Costa revela: “Até hoje, não entendemos o que aconteceu. É uma autêntica palhaçada do SIC. Também fui surpreendido. Usei o meu telefone apenas para facilitar o contacto do suposto cliente com o Didi (Mateus “e Oliveira). Não conhecia o senhor e só o vi quando fomos detidos.”

“Levei sete a oito catanadas nas costas sem saber porquê”, conta.

Segundo depoimento de ambos, os agentes do SIC extorquiram 210 mil kwanzas ao dono do cibercafé, Isidro, para o colocarem a ele e aos seus três funcionários em liberdade. Sobre o maliano, detido na rua como se fosse parte do mesmo caso, não sabem o que lhe aconteceu a seguir, nem ao seu gerador.

“O meu chefe já não quer falar sobre o assunto. Foi isso que aconteceu. Esses homens do SIC não investigam. Só agarram, levam e torturam”, afirma Hélder Costa.

Mateus de Oliveira garante nunca ter visto o agente do SIC que lhe telefonou como sendo um suposto cliente, até ao momento em que foi detido. É peremptório em afirmar que não recebeu dinheiro do mesmo ou de outra pessoa.

“Durante a acareação, praticamente não me deixavam falar ou cruzar informação. O investigador dizia-me ‘cala a boca’, e, quando tentei contrariar, o que o senhor dizia, ‘encerrou o processo’”, explica.

Incrédulo, Mateus de Oliveira denuncia: “Um investigador do SIC estava lá a gabar-se de que passa a ferro as suas vítimas, com ferro de engomar ligado, para obrigá-las a confessar.”

A cumplicidade da PGR

Como único detido no processo, depois da libertação dos outros no mesmo dia em que foram detidos, Mateus de Oliveira foi ouvido por uma procuradora, cujo nome não reteve.

“Ela leu-me que a prova da burla era o meu número de telefone, que tinha sido retirado das páginas da OLX. Respondi que faço publicidade dos meus serviços nas redes sociais. Por isso, o meu número de telefone é público.”

A 28 de Dezembro, após dez dias detido “por uma suspeita sem pés nem cabeça”, o procurador junto do SIC,  na Divisão de Polícia do Talatona, José Rodrigues Cambuta, expediu o mandado de soltura de Mateus de Oliveira, mediante pagamento de uma caução de 150 mil kwanzas. Sob o processo n.º 9341/17 TLA-PGR, Mateus de Oliveira tem de apresentar-se quinzenalmente na Esquadra do Nandó, e está proibido de se ausentar de Luanda ou do país, para além de outras medidas de coacção impostas pelo procurador.

Em relação à tortura infligida ao jovem, e em resposta às questões do Maka Angola, o procurador afirma que desconhecia o sucedido. Apesar disso, reconhece: “Conheço estas práticas e outras mais graves, que são horríveis e têm de acabar.”

As costas de Mateus de Oliveira apresentam as marcas da tortura.

 

“Actuamos como o fiscal da legalidade”, afirma o procurador, que invoca a complexidade da natureza humana e confessa que “precisamos de mudar muitas coisas”.

“O Ministério Público cauciona as barbaridades do SIC. É cúmplice e obriga um indivíduo detido ilegalmente e torturado a pagar uma caução para ser libertado. É um abuso”, denuncia Miguel Ganga, tio da vítima.

Reacção da família

A 25 de Dezembro, os familiares do Mateus de Oliveira, representados por um alto funcionário do Ministério do Interior, Manuel Ganga, escreveram ao procurador-geral da República, general Hélder Pitta Grós, e ao ministro do Interior, Ângelo de Barros da Veiga Tavares.

“São estes e outros tipos de práticas selváticas absolutamente inadmissíveis [por parte do SIC] que configuram flagrante abuso de autoridade, falta de respeito para com o cidadão comum”, denunciam os familiares às referidas entidades.

De acordo com a família, “como é consabido, os agentes do SIC têm sido useiros e vezeiros neste tipo de práticas arbitrárias, o que faz com que se subentenda que tem havido excessiva permissividade da parte dos superiores hierárquicos em relação a actos que, como este, lesam os interesses de pessoas comuns e inocentes”, acusa a família.

A família de Mateus de Oliveira espera, durante o mandato de João Lourenço, “o fim da era da banalização da justiça”. Caso contrário, alerta, “não teremos dúvidas de que continuaremos a assistir ao mesmo festival de violação e abuso dos direitos mais elementares das pessoas com total impunidade”.

Reacção das autoridades

Até à data da publicação do texto, não houve qualquer reacção da Procuradoria-Geral da República, tendo a família insistido com uma nova queixa, enviada ontem, 9 de Janeiro.

Por sua vez, o ministro do Interior ordenou a abertura de um inquérito, segundo apurou o Maka Angola. A 5 de Janeiro, Mateus de Oliveira foi ouvido pela Inspecção do Ministério do Interior. Ontem, foi a vez de o SIC ouvi-lo novamente, desta vez já sem recurso a práticas de tortura.

“Se o Ministério do Interior está preocupado com o caso, é porque o mesmo vai culminar com um processo-crime”, enfatiza o procurador Cambuta, ao tomar conhecimento da diligência do Ministério.

Por sua vez, Miguel Ganga questiona: “Será que só o Ministério do Interior deve estar preocupado com o caso? Afinal, qual é o papel do Ministério Público? Sinceramente, não posso deixar de manifestar as minhas dúvidas sobre a integridade moral e intelectual deste (in)digno representante do MP [José Rodrigues Cambuta].”

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