O Caso da Malária e o Estado de Direito

Retoma hoje, na 7.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, o julgamento do caso do desvio de verbas atribuídas pelo Fundo Global para a luta contra a malária em Angola. Ao todo, o fundo atribuiu, ao longo dos anos, cerca de 100 milhões de dólares, quatro dos quais foram parar aos bolsos de altos funcionários do Ministério da Saúde.

O caso é extraordinário, porque nenhum dos responsáveis pelo desembolso das verbas está a ser julgado, uma vez que foram abrangidos pela amnistia geral de 2016. Apenas a arraia-miúda se encontra no banco dos réus. Tinham autorização assinada para desembolso dos fundos as seguintes entidades: ministro da Saúde, José Vandúnem; secretário de Estado da Saúde, Alberto Masseca; secretário-geral do ministério da Saúde, Manuel da Silva Caetano; coordenadora da Unidade Técnica de Gestão do Fundo Global / MINSA, Maria de Fátima Saiundo; e, finalmente, o director do Gabinete de Planeamento e Estudos, Daniel António. 

Inicialmente, Manuel Caetano, Fátima Saiundo e Daniel António foram pronunciados pelos crimes de encobrimento e cumplicidade, mas acabaram amnistiados pelo Tribunal Supremo, a 4 de Outubro de 2016. 

Estão a ser julgados o ex-coordenador adjunto do Programa Nacional de Controlo da Malária do MINSA, o médico Nilton Saraiva Francisco, a ex-administradora financeira da Unidade Técnica de Gestão do Fundo Global / MINSA, Sónia Neves, e o marido desta, Mauro Gonçalves, que não era funcionário do projecto. 

Sónia Neves e o marido tinham duas empresas, a Gestinfortec Lda. e a Soccopress Lda., através das quais a administradora financeira do Fundo Global em Angola desviou mais de três milhões de dólares. Essas empresas não prestaram quaisquer serviços ao Fundo. 

Por sua vez, o médico Nilton Francisco também fazia negócio consigo próprio, através da sua empresa privada NC&NN, que fornecia material de propaganda ao Programa Nacional de Controlo da Malária. Através deste esquema, Nilton Francisco autorizou um contrato no valor de cerca de 72 milhões de kwanzas (o equivalente a 720 mil dólares, ao câmbio da época) para a sua empresa, tendo garantido que ao menos forneceu 80 por cento do material ao programa. 

Uma vez que os crimes de abuso de confiança e falsificação de documentos foram amnistiados, o Tribunal Supremo convolou o crime de abuso de confiança para crime de peculato, cuja moldura penal é de 12 anos para cima e não está abrangido pela amnistia.

Todas as saídas de fundos foram autorizadas pelos cinco assinantes, tendo uma das transferências feitas por Sónia Neves sido autorizada pelo então ministro José Vandúnem. 

No recurso ao Tribunal Supremo, na altura dirigido pelo actual presidente do Tribunal Constitucional, Manuel Aragão, os ora réus requeriam que o então ministro José Vandúnem fosse constituído arguido, por ter ordenado “o pagamento às empresas mencionadas nos autos, sem o que tais pagamentos nunca teriam sido realizados”. 

Não vamos julgar estas pessoas como culpadas ou inocentes, pois isso compete aos tribunais, mas convém relembrar os princípios básicos do direito constitucional penal da presunção de inocência e do direito a um julgamento justo e imparcial, a que os arguidos naturalmente têm direito, sejam estes, seja um dia Isabel dos Santos ou Manuel Vicente. A todos se aplica a mesma lei, e todos terão as mesmas garantias criminais. 

No entanto, a leitura da pronúncia final levanta dois tipos de dúvidas, que devemos enumerar a bem da luta pela existência de um Estado de Direito em Angola. 

A primeira dúvida liga-se à política judiciária. Embora com data anterior à tomada de posse de João Lourenço, este processo assemelha-se a outros que começaram a ser publicitados recentemente, como o referente ao administrador da Agência Geral Tributária, Nikolas Gelber da Silva Neto, ou o outro em que está envolvido o director nacional do Tesouro, Edson Vaz. 

Em todos estes casos, estamos perante processos criminais com visibilidade pública, que visam demonstrar o empenho das autoridades no combate à corrupção.  

Contudo, em todos os casos o empenho fica-se pelos altos funcionários administrativos, não atingindo nunca os políticos e responsáveis máximos. Ora, a estrutura do Estado angolano tem sido clientelar e patrimonial. Torna-se difícil acreditar que os ministros ou responsáveis políticos superiores não acompanhavam ou não sabiam o que os seus altos funcionários andavam a fazer.  

Neste caso concreto, como veremos quando analisarmos o detalhe técnico-jurídico, fica difícil não considerar o papel que o ministro da Saúde teria tido em termos de autorizações, pagamentos e supervisão dos seus serviços. Este hábito de fingir que se ataca a corrupção atingindo apenas funcionários e deixando os responsáveis políticos de fora tem de acabar. Senão, é apenas um fingimento de combate à corrupção, deixando a salvo os realmente grandes e verdadeiros corruptos. 

Debruçando-nos agora sobre o caso concreto, a grande perplexidade técnico-jurídica diz respeito ao acto material que terá consubstanciado o crime: a transferência de fundos do ministério para as empresas privadas. Diz-se que a arguida Sónia Neves efectuou as transferências, mas de seguida refere-se que nos processos foram apostas assinaturas desta, mas também de Manuel Caetano e de Daniel António. A pronúncia devia especificar os meios concretos e exactos usados para retirar o dinheiro do Estado, e não ater-se a palavras genéricas e abstractas. A lei exige que a pronúncia faça a indicação precisa dos factos imputados aos arguidos. Poderemos remeter para a pronúncia inicial, que menciona ordens de transferências, mas nunca se percebe quem assina, quem autoriza, quem é responsável pela documentação. 

No que diz respeito ao arguido Nilton Francisco, a decisão final de pronunciar sintetiza que este teve “igualmente contacto com o processo”, e por isso é acusado. É pouco ou nada, pronunciar uma pessoa por ter tido contacto com um processo. Também é verdade que na acusação existe um maior detalhe do que aquele que se encontra na pronúncia final, mas a pronúncia final deve ser exaustiva e não deixar no ar os factos que vão ser levados a julgamento, especialmente depois de ter alterado a qualificação jurídica dos mesmos.  

Quanto a Fátima Saiundo, parece que é pronunciada por ser distraída, ou, em termos jurídicos, negligente. A própria pronúncia reconhece que não constam dos autos indícios suficientes de Fátima Saiundo ter tido contacto com os processos das referidas transferências. Mas, apesar disso, invoca um dever de denúncia. Isto é ir longe demais. Se não teve contacto, então, na realidade, não sabia se os processos eram legais ou ilegais, se tinha ou não alguma coisa a denunciar. Um facto implica o outro, isto é, se tem contacto com o processo poderia saber que havia ali um crime. Se não teve contacto, como poderia saber se havia crime ou não? Na acusação fala-se de um dever de cuidado. Ora, como é sabido, o dever de cuidado diz respeito a crimes negligentes, e não a crimes dolosos. No máximo, Fátima Saiundo poderia ter sido acusada de crime negligente.  

Contudo, ainda em relação a Fátima, já vimos que foi declarada a amnistia do seu alegado crime, pelo que o tema não tem relevo prático – apenas assusta a forma simples como são imputados crimes a pessoas sem a necessária densificação jurídica. 

Na realidade, o ponto essencial da acusação e da pronúncia neste caso é a falta de rigor e de precisão nos factos imputados aos arguidos. Para se encetar um verdadeiro combate à corrupção, é preciso muito mais do que meros teatros judiciais para “americano ver”. 

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