A “Coisa” do MPLA

Lemos e relemos uma “coisa” que saiu da última reunião do Comité Central do MPLA, ocorrida a 23 de Outubro de 2017. Essa “coisa” chama-se “Moção de Apoio ao Presidente do MPLA, Camarada José Eduardo dos Santos”, e só podemos percebê-la enquanto moção de confronto com o presidente da República actual.

A “coisa” tem três pontos: um a louvar o camarada José Eduardo dos Santos, outro a enaltecer o camarada José Eduardo dos Santos e o terceiro a apoiar incondicionalmente o camarada José Eduardo dos Santos. Estranhamente, a “coisa” não faz uma única referência ao camarada João Lourenço. Nem que fosse para o “saudar como ilustre seguidor da luz brilhante alumiada pelo camarada José”. É um silêncio comprometido.

O facto de o presidente da República não ser o presidente do MPLA é um problema efectivo. Se tal acontecesse num país comunista, como Angola foi até 1992, ou a União Soviética, a interpretação de tal dualidade seria clara. Atendendo à predominância do partido como organização de vanguarda na classe operária, o presidente do MPLA é que mandava. O cargo de presidente da República, quando desempenhado por outra pessoa, seria um cargo subalterno, sem poder efectivo, apenas servindo para cortar fitas e assinar diplomas.

Acontece que, pelos menos formalmente, Angola não é um país comunista desde 1992. Vive num sistema democrático cujas regras são ditadas pela Constituição e cujo Estado é organizado segundo a estrutura de um Estado Democrático de Direito. Assim, o presidente da República dispõe dos poderes que lhe são conferidos pela Constituição, e só deve obediência à Constituição e à Lei.

Neste caso, as normas que existam no MPLA e que contrariem o exposto na Constituição e na Lei são elas próprias inconstitucionais, e não devem portanto ser aplicadas. Aquela regra estatutária que submete o presidente da República ao presidente do MPLA, em termos dos seus poderes constitucionais, não tem qualquer validade. A única medida efectiva e constitucional que o MPLA pode realizar é retirar o seu apoio ao presidente da República na Assembleia da República, e dificultar a sua actividade político-legislativa. Fora isso, em termos legais, não tem poder para lhe dar ordens, instruções ou determinar escolhas.

Este é um primeiro ponto a esclarecer.

Um segundo ponto relaciona-se com o direito e a política comparada.

De um modo geral, o líder partidário é também aquele que assume as principais funções executivas no país. Isto é, o presidente do partido é o presidente da República. Não existe nenhuma lei ou regra tácita que assim obrigue, mas é o que acontece na prática. Há excepções, contudo.

Uma delas é nos Estados Unidos. O líder do Partido Republicano não é o presidente dos EUA. Presentemente, o presidente dos EUA é Donald Trump, e o presidente do Partido Republicano (Republican National Comittee Chair) é uma senhora chamada Ronna Romney McDaniel, que ninguém do grande público conhece, e que certamente não exerce qualquer influência sobre Donald Trump. Quando o líder do partido do governo não coincide com o seu presidente, a sua função é administrativa e de coordenação, não interferindo na política e na esfera presidencial. É o modelo americano.

Outro modelo, que acontece por vezes no Brasil, é o presidente da República nomear ou promover a eleição de uma pessoa da sua confiança para líder do partido. Neste caso, o partido é um apêndice da Presidência, funcionando o presidente do partido como correia de transmissão do presidente da República. No tempo de Lula da Silva, houve vários, como por exemplo José Genoíno ou Ricardo Berzoini.

A versão alternativa, em que é o presidente do partido quem comanda os destinos do país através de um presidente ou primeiro-ministro, não é tão habitual, e geralmente acontece em países ou governos que começam a mostrar tendências autoritárias. É o caso da Polónia, em que se afirma que o líder “de facto” do país é Jaroslaw Kaczyński e a primeira-ministra é Beata Szydło. Mas a realidade é que a Polónia está sob escrutínio da União Europeia e do Conselho da Europa, devido a possíveis violações do Estado de Direito.

Em resumo, o Direito demonstra que não são possíveis presidências da República bicéfalas ou partilhadas “de facto”. O presidente da República é quem detém os poderes que a Constituição lhe dá, e nenhuma norma inferior lhe pode retirar ou condicionar esses poderes, sobretudo estatutos partidários. Obviamente, isto não quer dizer que não esteja politicamente condicionado – mas esse é um aspecto diferente.

A história e a política comparadas demonstram, por sua vez, que no caso de coexistência em pessoas diferentes da presidência da República e da liderança no partido, no final, apenas um deles fica a mandar, tornando-se o outro num mero “verbo de encher”. Vezes e vezes esta história tem-se repetido.

Portanto, ou JES se afasta ou existirá uma luta fratricida no MPLA para ver quem manda efectivamente. Não é possível serem os dois. 

Comentários