O Batom da Ditadura (Revisitado)

Este foi o título de um histórico artigo de Rafael Marques que desencadeou a fúria do regime do MPLA, sentenciando-o a décadas de martírio, de perseguição política e de ostracismo.

Nesse artigo, Rafael Marques denunciou com vigor as arbitrariedades do regime que já nesse ano 2000 tentava a todo o custo disfarçar a crueza do comportamento de uma ditadura militar com cosméticas de respeitabilidade.

Mas já nessa altura o batom da ditadura começava a não chegar para encobrir o quotidiano criminoso e para branquear a imagem de um MPLA que tentava justificar tudo com a guerra civil contra a UNITA.

As denúncias de Rafael Marques trouxeram ao conhecimento do mundo o assalto à riqueza pública em Angola por uma desenfreada quadrilha de “sanguessugas do poder”, como ele lhes chamou, e vários crimes bárbaros que se iam cometendo a coberto da folhagem luxuriante da mata angolana, nessa terrível e desonesta década de 1980.

E a ditadura do MPLA precisa cada vez de mais batom para esconder a taxa elevadíssima de mortalidade infantil nos hospitais e para tentar disfarçar o sangue que corre entre os diamantes das Lundas.

As próximas eleições são agora a última camada de batom com que a ditadura se tenta disfarçar, confiante de que o oportunismo das comunidades internacionais cúmplices na pilhagem dos recursos angolanos olhe para o lado, ignorando a brutalidade de um regime que conseguiu, num dos mais ricos países do mundo, produzir a maior taxa de mortalidade infantil nas estatísticas da ONU.

Vai ser preciso mesmo muito “batom” para esconder a realidade do quotidiano angolano fora dos condomínios fechados onde a elite se refugia, confiante de que depois do simulacro de mudança destas eleições tudo continue na mesma e lhe seja permitido prosseguir a desenfreada “acumulação primitiva de capital” com que as ditaduras de Leste se justificavam para saquear os recursos naturais dos seus Estados.

O actual problema da ditadura (e as sondagens atestam-no) é que o batom já não chega e está cada vez mais caro.

Longe vão os dias em que o petrodólar de Cabinda comprava espaço televisivo em Portugal para se exibirem, em prime-time, estranhas entrevistas a José Eduardo dos Santos e a Manuel Vicente.

Nessa altura, o dinheiro saqueado aos angolanos comprava uma espécie de Rumo de propaganda que dava ao regime e às suas corrupções endémicas um tratamento cosmético, urdido por profissionais, que tornava tudo quase aceitável.

Entre documentários televisivos generosos e, sobretudo, caros, as vozes críticas do regime iam sendo silenciadas e os propagandistas iam ganhando espaço.

Apareceram os arautos do melhor-mundo-possível, como o “embaixador” Luvualu, mandado pelo mundo fora a tocar uma desafinada pandeireta, entoando cânticos à boa governação e rogando pragas terríveis aos traidores que tinham a temeridade de dizer que em Angola se estava a morrer mais e a comer bastante menos do que no resto do mundo.

Só que agora, sem divisas convertíveis para pagar aos mercadores de imagens, os retratos da realidade angolana passaram a ocupar o espaço que era o da propaganda e não conseguem esconder que este processo eleitoral se passa num dos países mais miseráveis do mundo, onde uma elite desalmada construiu esta espécie de farsa política para continuar entrincheirada nas torres dos seus privilégios.

Só há uma maneira de quebrar este ciclo de violência que dura há 43 anos – é recusar pôr mais batom na ditadura, não lhe dando a legitimidade deste simulacro de voto.

Angola não tem uma Constituição que suporte a democracia. Tem uma Constituição que, na versão actual (já tão longe do modelo original), não dá representatividade aos próprios eleitos e, com isso, insulta os eleitores. Porque não deixa que haja soluções eleitorais democráticas. A Constituição angolana, como tem sido interpretada, serviria bem a Coreia do Norte (onde também não há coligações), ou a Venezuela (onde não há oposições), ou o Zimbabwe (onde os presidentes são perpétuos), ou a Alemanha de Leste com a sua Stasi (que tanto inspirou a actual praxis governativa angolana). Mas não serve de todo para processos democráticos.

É uma Constituição alterada de modo a ser lida como “quem-ganha-leva-tudo”. E isso não é democrático. Não tolera representatividades para além dos vencedores. É uma Constituição de arrogantes, cheia das arrogâncias dos conquistadores. E isso não é decente.

Não contém garantias de que o poder escolhido possa ser fiscalizado por instituições legítimas. É, na verdade, uma Constituição de presidencialismo absoluto, sem mecanismos reais de recurso e de onde advém um Parlamento que de facto está ausente do processo real de decisão.

Não há representatividade democrática e plural possível na actual Constituição angolana.

De facto, assim, em Angola nunca haverá um presidente cessante. Haverá sempre presidentes eméritos, como haverá filhas e filhos de presidentes eméritos, generais eméritos e tudo o mais que a ausência de escolhas políticas impõe a uma nação sufocada por uma ditadura. Um perpétuo circular de legados de influências sem fim à vista, num constante e perigoso incesto político.

Nesta fase, estruturar o exercício pleno e colectivo da cidadania – depois das eleições – é a mais forte mensagem de consciência política que o povo angolano pode transmitir aos seus opressores, e a única via de penetrar nas contas offshore onde se esconde a “acumulação primitiva de capital” e tudo aquilo em que essa acumulação se traduziu, das mansões em Washington às mansões na Flórida ou aos apartamentos no Estoril e no Mónaco.

 

 

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