Terror no Congo Expõe Falta de Segurança em Angola
Mais de 30 mil refugiados da República Democrática do Congo (RDC) encontram-se alojados em Kakanda e Mussunga, dois campos de acolhimento provisório na província da Lunda-Norte.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estima que diariamente chegam a estes campos de acolhimento cerca de quinhentos refugiados, transportados em camiões e autocarros ao seu serviço. Os cidadãos congoleses continuam a atravessar a fronteira para escapar ao actual conflito na região do Kasai, que rebentou em Abril do ano passado.
Nessa altura, juntamente com os refugiados entraram também no território angolano cerca de 180 efectivos armados das forças armadas e policiais congolesas, que assim escaparam aos confrontos entre as forças governamentais e a milícia Kamwina Nsapu, segundo dados recolhidos por este portal junto das autoridades locais. Mais de cem elementos das forças congolesas, de acordo com as mesmas fontes, conseguiram fugir ao controlo das forças de defesa e segurança, e “desapareceram” na cidade do Dundo, enquanto os restantes foram repatriados.
Mais ainda: a 14 de Abril de 2016, o referido grupo rebelde atacou o posto fronteiriço de Itando, tendo como alvo elementos das forças armadas e policiais da RDC. Desde esse dia, efectuaram vários outros ataques em território angolano.
Ao longo de vários dias, Maka Angola pôde presenciar a realidade que se vive nos centros de acolhimento de Kakanda e Musunga, e partilha agora testemunhos arrepiantes.
Catharine Tombe, de 47 anos, foi forçada a assistir a morte do seu pai às mãos da milícia Kamwina Nsapu. Antes disso, vários milicianos, em número que não sabe precisar, revezaram-se a violar a sua mãe, também na sua presença.
“O meu pai, ao ver as milícias a violarem a mãe, não aguentou e tentou lutar. Cortaram-lhe a cabeça com catana.” Catharine faz uma pausa. Tenta recuperar o fôlego. Revela que lhe falta coragem e forças para reviver a barbaridade que testemunhou. Fixa o olhar numa criança. É a sua sobrinha, que terá cerca de sete anos, e diz que é um milagre aquela criança estar viva. “As milícias regaram o corpo da menina com petróleo, trancaram-na dentro de uma casa de pau-a-pique e atearam-lhe fogo.” Apesar das queimaduras, a menina sobreviveu.
As crianças são quem mais sofre com a guerra. De acordo com informações prestadas pelo ACNUR, 53 por cento dos refugiados nos dois campos são crianças. Centenas de crianças, separadas dos pais e familiares durante a fuga, estão abrigadas em quatro tendas no campo de Kakanda.
Mbumba-Ntumba, de 65 anos, também refugiado em Kakanda, lembra os horrores que viveu numa madrugada de Abril.
“Eu estava em minha casa, quando um grupo de pessoas comandado pelo soba da minha zona de residência entrou e começou a bater-me. Cortaram-me o braço esquerdo com uma catana e continuaram a bater-me com a catana na cabeça até eu ficar inconsciente.”
Conta ter sido resgatado, ainda inconsciente, por voluntários da Cruz Vermelha Internacional, que o levaram até à fronteira da RDC com Angola.
A inépcia das Forças Armadas da República Democrática do Congo é relatada por Odia Rosa, de 40 anos. A sua aldeia, com pouco mais de mil habitantes, foi atacada também em Abril, a poucos quilómetros de uma unidade militar do governo.
“Os militares sabiam que a população estava a ser atacada, mas nada fizeram. O Kabila [presidente da RDC] é o culpado disso. Quanto mais houver guerra, mais tempo ele fica no poder”, denuncia.
Na fuga para Angola, entre toda a violência, Odia Rosa viu-se separada da sua filha de 15 anos [nome omitido]. Há quatros meses que alimenta a esperança de que a filha tenha sobrevivido. Sempre que chegam novos refugiados, Odia corre ao seu encontro, para ver se encontra a filha ou alguém que lhe dê notícias dela.
A milícia Kamwina Nsapu iniciou a sua rebelião no Kasai Oriental, quando o governo de Joseph Kabila fez subir ao trono um indivíduo alheio à linhagem do rei do Kasai, mas favorável à sua política. O alegado herdeiro legítimo, Jean Nsapu Pandi, conhecido como Kamwina Nsapu, insurgiu-se contra o que considerou tratar-se da usurpação do seu trono, e deu início a uma rebelião violentíssima, de carácter tribal, apoiado nas etnias Baluba e Batetela, contra as forças e entidades governamentais, bem como contra cidadãos de outras etnias.
Nos campos de acolhimento falta tudo
Nos campos de acolhimento, as carências são gritantes. Não há colchões, os adultos e as crianças dormem no chão e algumas mulheres, incluindo grávidas, dormem ao relento, porque os hangares e as tendas distribuídas pelo ACNUR são insuficientes.
Os refugiados recebem apenas uma refeição, pirão com feijão, uma vez por dia. Muitos preferem comer apenas pelas quatro da tarde, “para equilibrar o estômago”.
JES como factor de estabilidade
Desde o estabelecimento da paz, em 2002, Angola tem projectado a nível internacional a imagem do presidente José Eduardo dos Santos como um grande foco de estabilidade político-militar na região dos Grandes Lagos, do qual a RDC faz parte.
No entanto, a realidade que se vive na fronteira nordeste de Angola não deixa margem para dúvidas quanto ao estado de incúria e desleixo das Forças Armadas Angolanas, sobretudo do seu Serviço de Inteligência e Segurança Militar (SISM).
Em Abril passado, efectivos militares locais, surpreendidos e sem preparação perante os ataques, chegaram a capturar jovens civis na Lunda-Norte, particularmente no município do Cuango. Esses jovens foram enviados, sem qualquer treino básico, para lutar contra os atacantes congoleses, conforme várias denúncias feitas por cidadãos locais e familiares de alguns desses jovens.
Nas Lundas, as autoridades locais explicam que o representante regional do SISM foi despejado da residência que havia sido alugada pela inteligência militar, em Saurimo, por não pagar renda durante dois anos. “Como é possível à Inteligência Militar nos gabinetes de Luanda saber o que realmente se passa na fronteira, quando o seu representante teve de abandonar a área por falta de pagamento de rendas?”, questiona-se fonte da administração local.
Outrossim, em Luanda, a realidade não é menos caótica. Oficiais do SISM com responsabilidades em sectores nevrálgicos continuam sem exercer as suas funções desde 2013, altura em que foram nomeados pelo presidente da República e comandante-em-chefe José Eduardo dos Santos. Esta situação desencadeou um clima de desmoralização sem precedentes. Nunca tomaram posse e estão proibidos de assinar quaisquer documentos pelo chefe do SISM, general António José Maria “Zé Maria”.
Alguns desses oficiais foram afastados compulsivamente do SISM sem terem sido demitidos por José Eduardo dos Santos. Foi o caso, por exemplo, do tenente-general Koquelo, chefe da Inteligência do Comando do Exército; do brigadeiro Calongo, chefe-adjunto da Inteligência do Estado-Maior General das FAA; e do brigadeiro Simba, chefe da Direcção Operativa da Contra-Inteligência Militar.
No passado dia 27 de Junho, o general Zé Maria, sobrepondo-se à autoridade do comandante-em-chefe, afastou compulsivamente, por capricho, os brigadeiros Mbuila João Minguela e João Kaluhapa, respectivamente chefes da direcção de Contra Inteligência Militar e de Inteligência Militar Operativa do Comando do Exército. Só o presidente tem, de forma exclusiva, a competência de movimentar oficiais generais.
Alheios a esta situação, muitos cidadãos angolanos ao longo da fronteira continuam a alimentar a ideia de que uma intervenção militar angolana na região do Kasai poderá restaurar a ordem e estancar o fluxo de refugiados para o território nacional.