Os Poderes Judiciais e o Julgamento do Presidente da República

Decorre neste momento uma grande polémica acerca das possibilidades legais que o presidente da República tem para interferir no processo intentado contra Domingos da Cruz, Luaty Beirão e os restantes 15 jovens.

O argumento principal daqueles que dizem que o presidente nada pode fazer assenta na invocação do princípio da separação de poderes. O presidente é titular do Poder Executivo e não pode interferir no Poder Judicial. 

Ora, este argumento não é válido. A Constituição angolana não consagra um princípio puro de separação de poderes, mas um princípio de separação e interdependência de funções (artigo 105.º, n.º 3). Deste modo, o que está efectivamente separado são as funções e não os poderes. E, mesmo assim, aquelas devem funcionar de forma interdependente, isto é através dos mecanismos constitucionais de checks and balances. Significa isto o que o Presidente está obrigado a respeitar é a Constituição, podendo interferir nos diversos poderes de acordo com os limites da mesma, e sempre para salvaguardar os seus princípios essenciais: democracia, soberania, estado de direito, etc. Acresce que o Ministério Público é um organismo de Estado, dotado de autonomia, mas não de independência, recebendo instruções directas do presidente da República (artigos 1.º e 8.º, n.º 3 da Lei Orgânica do Ministério Público). Por isso, em qualquer momento o presidente pode dar instruções directas ao procurador-geral da República. No sistema angolano, os erros do procurador-geral são erros do presidente da República.

Poder-se-á contrapor que o presidente da República, habilitado a dar instruções directas ao procurador-geral da República, não pode contudo dá-las aos juízes – e, na fase em que o processo dos 17 está, são os juízes que determinam o seguimento do processo.

Isto é verdade, mas o facto é que a desistência da acção por parte do Ministério Público, a não audição de testemunhas e de outros meios de prova teria efeito necessário sobre a convicção do juiz e permitir-lhe-ia pôr rapidamente fim ao processo.

Ainda assim, dir-se-á que caberá sempre ao juiz decidir, e este não pode receber ordens do presidente da República, porque os tribunais são independentes. Contudo, mesmo neste caso, o presidente tem poderes judiciais que lhe são conferidos pelo artigo 119.º, n): são os poderes de indultar e comutar penas. Se é verdade que o indulto e a comutação de penas dizem habitualmente respeito a penas aplicadas, tal não impede desde já o presidente de emitir esse indulto.

Há, de resto, um precedente histórico de indulto presidencial antecipado: aquele que o presidente americano Gerald Ford concedeu a Richard Nixon por, e cito, “todos os crimes que tenha cometido ou possa ter cometido entre 20 de Janeiro de 1969 e 9 de Agosto de 1974 contra os Estados Unidos”. O presidente americano recorreu à norma da Constituição americana contida no artigo II, secção 2, que confere o poder de perdão ao presidente e é análoga à norma angolana.

Nestes mesmos termos, nada impede que desde já o presidente angolano, no exercício dos seus poderes constitucionais, indulte os jovens activistas por crimes que tenham ou possam ter cometido entre Janeiro e Setembro de 2015 contra o Estado angolano.

Finalmente, também a Assembleia Nacional pode decretar uma Amnistia ou Perdão Geral nos termos do artigo 162.º g) da Constituição da República de Angola.

Não faltam, portanto, fórmulas legais para resolver esta situação, no âmbito dos poderes normais dos vários órgãos políticos de Angola. 

Em suma, José Eduardo dos Santos pode conceder um indulto antecipado, isto é, perdoar desde já todos os crimes ou eventuais crimes que os acusados tenham cometido e as penas a aplicar, o que de imediato poria fim ao processo, ou pode, enquanto líder do maior partido representado na Assembleia Nacional, dar instruções no sentido de esta aprovar um perdão geral ou uma amnistia. 

Por isso, quer directamente, através do indulto, ou indirectamente, através da amnistia ou perdão geral deliberado pela Assembleia Nacional, José Eduardo dos Santos dispõe de vários mecanismos jurídico-políticos para resolver este imbróglio. 

A questão, contudo, é que a inépcia jurídica do procurador-geral, o General João Maria de Sousa, conduziu o presidente a um beco sem saída. 

E por isto mesmo, quem será julgado no próximo dia 16 de Novembro não é Domingos da Cruz e os restantes jovens, mas sim José Eduardo dos Santos e o seu regime. Quem estará no banco dos réus é o presidente da República, e ironia das ironias, o procurador principal do processo será Luaty Beirão. No suposto Governo de Salvação Nacional, criado como um exercício de entretenimento no Facebook pelo advogado Albano Pedro, com os contributos dos seus amigos, o procurador-geral indigitado foi Luaty Beirão. E também esta brincadeira do Facebook foi apensa ao processo dos jovens como prova das suas intenções para derrubar o presidente.

A história inverteu, assim, as formas judiciais. No próximo dia 16, começará o julgamento de José Eduardo dos Santos.

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