Discurso contra a Nação

O discurso à Nação do presidente da República foi ontem proferido pelo vice-presidente Manuel Vicente, já que José Eduardo dos Santos não compareceu no Parlamento, por alegadas razões de saúde. Do discurso, destaca-se precisamente a ausência do presidente e silêncio aparentemente indiferente quanto aos presos políticos em Luanda.

Estado crítico: Luaty Beirão e o Presidente

Por norma, o estado de saúde do presidente tem–se mantido tabu; a sua evocação no acto mais solene do calendário presidencial demonstra claramente que o presidente esgotou os seus argumentos e poderá ter mesmo problemas de saúde sérios. Mas neste momento a sua maior dor de cabeça é o preso político Luaty Beirão, que se encontra em estado crítico, passados 24 dias de greve de fome.

Muitos cidadãos aguardavam o discurso com grande expectativa, porque achavam que o presidente usaria essa oportunidade para apresentar uma solução política para o caso dos 15 presos políticos, detidos desde Junho passado. Debalde. O presidente pediu a Manuel Vicente que lhe lesse o texto, onde perpassa uma absoluta arrogância e um alheamento voluntário da realidade. José Eduardo dos Santos declarou que não cederá a pressões. Pois bem: cairá com a pressão.

Recordo que em 1999 o presidente perguntou aos seus conselheiros se a prisão de um “miúdo” não sujaria a sua imagem. Tratava-se do período de deliberações antes de o presidente ordenar a minha detenção por ter escrito o “Baton da Ditadura”. TInha 28 anos. Em 2000, JES acabou na lista dos dez piores inimigos da imprensa no mundo, na companhia de Kim Jong Il, da Coreia do Norte, e de outras figuras tristes que se destacam pela repressão violenta. Depois desse erro de cálculo político, o trabalho de limpar a sua imagem tornou-se bastante dispendioso.

A trapalhada foi imensa, e em tribunal os argumentos evoluíram de difamação contra o presidente da República para actos de desestabilização do exército. O então porta-voz do presidente, Aldemiro Vaz da Conceição, testemunhara que eu, com os meus escritos, havia desestabilizado as ofensivas militares governamentais contra os últimos bastiões da UNITA, no Bailundo e Andulo, e desmoralizado os soldados Forças Armadas Angolanas. O juiz Joaquim Cangato tinha instruções para me condenar por difamação, e perante os argumentos absurdos de Aldemiro da Conceição mandou-o calar-se e sentar-se. É este tipo de independência judicial que se espera de um poder despótico: cumprir ordens sim, mas com razoabilidade.

A prisão dos 15 “miúdos”, amplificada mundialmente pela heróica e singular greve de fome do Luaty Beirão, não sujará a imagem do presidente. Enterrá-la-á bem fundo no lodo da crueldade do seu poder. O modo como José Eduardo dos Santos está a gerir este caso denegrirá para sempre o seu legado político.

O caso ficará para a história: um gigante, até então discreto, das ditaduras africanas foi derrotado por um bando de miúdos que tencionavam apenas provocá-lo com ideias políticas pacíficas, mas “subversivas”.

A verdade é que a insensatez do procurador-geral da República, general João Maria, que logo apareceu a falar publicamente de tentativa de golpe de Estado, retirou qualquer razoabilidade que se pudesse esperar do sistema judicial. Por isso, todos aguardam pela decisão do mais alto magistrado da Nação, o ordenador José Eduardo dos Santos.

Auto-suficiência das tropas

Num outro ponto importante do discurso, o presidente mandou falar da necessidade de as Forças Armadas Angolanas e a Polícia Nacional produzirem os seus próprios víveres e uniformes. A auto-suficiência na produção dos seus mantimentos e, no entender do presidente, uma das medidas destinadas a ultrapassar a crise económica.

Essa ideia de José Eduardo dos Santos convida a duas leituras. Na primeira, pode-se aferir que o presidente já se manifesta incapaz de pensar em soluções e fala por falar. O exército paga uma miséria aos soldados, insuficiente uma alimentação básica.

Na segunda, o chefe de Estado demarca-se de qualquer responsabilidade sobre o papel que as forças armadas e a polícia desempenham na manutenção da estabilidade do regime. O presidente transferiu assim o ónus dessa responsabilidade para os comandantes militares e policiais, incumbindo-os de serem criativos na de alimentação e de condições básicas para os seus homens.

Mas há aqui um grande calcanhar de Aquiles. O salário real de um soldado, que é de 25 mil kwanzas, passou a oscilar entre os US $75 a US $100, de acordo com as flutuações do mercado informal de câmbio. O exército angolano tem mais de cem mil homens. Não tarda será um exército de famintos descontentes. Estamos num país onde as empregadas domésticas dos generais ganham muito mais do que os soldados, assim como as engomadeiras dos deputados, que chegam a ganhar oficialmente 60 mil kwanzas mensais.

Como justificar que esses soldados, que fizeram a guerra para proteger o regime, sejam hoje os mais discriminados servidores do Estado angolano?

Uma oportunidade perdida

O discurso do presidente, na verdade, foi pouco mais do que um relatório com muitos números sobre os progressos do seu governo nos domínios da saúde, educação, reinserção social e reintegração de desmobilizados, cuja fiabilidade é duvidosa. Na saúde, por exemplo, não há qualquer referência ao facto de Angola estar outra vez classificada como tendo a pior taxa de mortalidade infantil no mundo.

Em resumo, o presidente perde mais uma soberana oportunidade para dizer o que a nação realmente quer ouvir, que está cansado, após 36 anos de poder, precisa de cuidar melhor da sua saúde e tem um plano de transição.

Para o povo, se se mantiver a inércia e a ausência de lideranças esclarecidas, a solução será rezarem por um milagre, cada um no seu lar. Mas também já começa a ser perigoso rezar por um país melhor, pela saúde dos críticos do regime e por mudanças que renovem as esperanças dos angolanos. O assalto policial à Igreja católica de São Domingos, no passado dia 12, por causa de uma missa pela saúde dos 15 presos políticos, é bom exemplo do desespero do regime.

Oremos, Senhor, para que os soldados e agentes policiais continuem a ser sacrificados e a sacrificarem-se pela garantia da estabilidade política e do poder do presidente. Que as péssimas condições sociais e de vida da maioria dos soldados e policiais sejam apenas prova do seu patriotismo e elevado sentido de lealdade para com os ilustres dirigentes deste país, a quem protegem batendo nos mais fracos. Por estes, oremos também, com a graça do Senhor.

Ámen.

 

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