As Marias Sacrificadas da Educação

A moto-carga de três rodas, popularmente conhecida como kaleluya, transporta sete pessoas, a maioria de pé. Os passageiros, envoltos na poeira daquela estrada de terra batida, vermelha, gritam e acenam anunciando uma emergência. Paramos o carro e baixamos os vidros, deixando escapar o fresco do ar condicionado.

O moto-taxista e os passageiros explicam, ao mesmo tempo, que viajam com a professora Maria Savilinga, de 29 anos, e que os alunos estão à sua espera para a realização de provas. De kaleluya, a professora não chegaria a tempo à aldeia do Sassoma, na comuna do Sambo.

Diariamente, a professora percorre mais de 105 quilómetros em viagens de ida e volta em kaleluyas, do bairro de São João, na cidade do Huambo, para o município da Tchicala-Tcholoanga, onde lecciona a 6.ª classe. A Igreja Congregação Baptista de Angola disponibilizou o seu local de culto como sala de aulas para duas classes em simultâneo da escola primária pública n.º 54. A referida escola, de quatro salas de aulas, foi construída de forma precária, com simples adobes de barro e capim, e está inoperante devido à época de chuvas, que destruiu a cobertura de palha.

Maria Savilinga gasta diariamente dois mil kwanzas em transporte de kaleluyas de e para o local de trabalho, auferindo um salário mensal de 147 mil kwanzas, e sustenta quatro filhos. Nos dias de trabalho, passa diariamente um total de quatro horas ensanduichada em kaleluyas.

Na pequena igreja de construção precária, encontrámos a outra professora, que partilha o local de culto e lecciona os 30 alunos da 5.ª classe. Maria Ngueve Cassinda, de 40 anos, também vive na cidade do Huambo, no bairro de Santa Teresa – Benfica. De igual modo, gasta dois mil kwanzas diários de e para a escola, auferindo um salário mensal de 140 mil kwanzas, com os quais tem de sustentar oito filhos.

As duas turmas estão separadas pelo púlpito da igreja e cada uma tem o seu quadro num canto oposto. Os bancos corridos de madeira e os troncos no chão servem de carteiras para os alunos.

Para os alunos da 5.ª classe, a prova do segundo trimestre é de História. As cinco perguntas estão escritas no quadro. Os alunos têm de responder sobre quem foram os primeiros habitantes de Angola; em que região habitaram os primeiros povos; quais eram as suas principais actividades produtivas; e quando se tornou Angola independente. “Diz como se chamou primeiro precidente de Angola”, é a quinta pergunta. A sexta pergunta já não cabe no quadro. Só lá está o número. Nesse meio rural, governa o “precidente”.

Já a turma da 6.ª classe tem uma prova de Educação Manual e Plástica. “Faça um desenho livre e pinte com material que tiveres.” Com tantos problemas de monta, a falta de coerência verbal no enunciado parece irrelevante.

O desafio de mobilidade que estas duas professoras enfrentam exemplifica um dos maiores condicionalismos estruturais que fomentam o atraso, sobretudo nas áreas rurais, do processo de ensino-aprendizagem.

Segundo depoimentos recolhidos pelo autor, muitos moto-taxistas, por solidariedade para com o trabalho dos professores – que vêem como os educadores dos seus próprios filhos –, cobram mil kwanzas por viagem, em vez dos habituais 1500. É uma forma de contribuírem para o processo de ensino-aprendizagem, de serem “amigos da educação”.

A Estrada Nacional 250, que liga as províncias do Huambo e do Bié, tem um desvio, na Tchicala-Tcholoanga, para a aldeia de Sassoma, numa extensão de 43 quilómetros de terra batida. Está em melhores condições do que muitas estradas nacionais reabilitadas, negligenciadas ou ignoradas pelas autoridades centrais. No percurso de regresso, contámos 54 kaleluyas em circulação. Os kaleluyas são praticamente o único meio de transporte para as comunidades locais.

É notório que faltam no país políticas públicas eficazes relativamente aos transportes públicos, sem as quais não é possível garantir a mobilidade efectiva dos cidadãos em todo o país e de acordo com as realidades locais.

O governo central, através do Ministério dos Transportes, concentra em si todos os poderes financeiros de aquisição de meios de transporte público para todo o país. Apenas delega nos governos provinciais a responsabilidade de licenciamento dos operadores privados para a prestação deste serviço, entre os quais são distribuídos – a fundo quase inteiramente perdido – os veículos adquiridos pelo Estado.

Em termos de decisão, prevalece o dualismo nas políticas de desconcentração e descentralização de poderes do governo central para a administração local. Delegam-se responsabilidades de gestão sem a componente financeira e aquisitiva de meios adequados às realidades locais. Continua a vigorar o modelo soviético de centralismo absoluto na sua versão angolanizada, que facilita a corrupção e a captura do Estado.

Então, qual é a motivação das professoras?

Maria Savilinga sorri e diz em inglês “unfortunately [infelizmente], apesar de ser licenciada em língua inglesa, ganho como técnica média. Trabalho como professora há cinco anos. Primeiro, sacrifico-me para ajudar ao desenvolvimento do país e, depois, luto pela sobrevivência”.

A professora explica porque fala em sobrevivência. “A fome, para nós, não é uma questão relativa. Dói-nos mais ainda vermos tantas crianças a desistirem da escola porque têm de ajudar as famílias nas lavras, por causa da fome.” Dos mais de 30 alunos com que iniciou o ano, conta agora menos de metade nos exames, por conta das desistências e dos meninos que se ausentam para a lavoura.

Maria Cassinda parece mais conformada: “Já estou habituada a trabalhar nessas condições. Escolhi ser professora. É a minha missão e o meu sacrifício.” Nas mãos, a professora tem umas cinco espigas de milho. Manifesta-se agradecida ao aluno que foi à lavra e dela se lembrou com a oferta do alimento.

O estado da aldeia é desolador, com uma população estimada em mais de dois mil habitantes, sem qualquer tipo de infra-estrutura para além das cabanas típicas de adobe e cobertura de palha. Não havendo sequer uma escola propriamente dita, também não há uma residência para os professores ou sequer um estabelecimento comercial.

No ano passado, o chefe do governo, João Lourenço, exarou o Decreto Presidencial n.º 67/23, para motivar, “atrair e manter os quadros nos órgãos e serviços da administração local do Estado, de modo a garantir o crescimento e desenvolvimento harmonioso do país”.

Esse decreto estabelece as condições de atribuição de subsídios de isolamento, de instalação e de renda de casa, bem como incentivos sociais e outros benefícios atribuídos pelo Estado.

Ora, as professoras Maria Savilinga e Maria Cassinda lamentam o facto de não terem direito a qualquer tipo de subsídio, incentivo ou benefício por parte do Estado.

Todavia, o referido decreto presidencial determina a sua aplicação nos municípios com estrutura orgânica dos tipos C e D sobre a Classificação de Municípios. Por sua vez, o Decreto Presidencial n.º 164/19 classifica o município da Tchicala-Tcholoanga como tendo uma estrutura orgânica de tipo C.

Portanto, no caso das professoras Marias, os decretos presidenciais ora mencionados, bem elaborados no papel, parecem servir para nada.

A agravar este cenário, a sociedade angolana, de um modo geral, continua a não valorizar a educação, alheada da urgência de partilharmos uma visão comum, com acções concretas que permitam que a educação cumpra o seu papel fundamental para o futuro do país.

A província do Huambo confronta-se com uma explosão demográfica que exige que se faça uma profunda reflexão pública sobre o destino a dar a uma população tão jovem. Segundo dados do governo local, dos cerca de 2,8 milhões de habitantes da província, cerca de 1,4 milhões têm até 14 anos de idade. Ou seja, metade da população do Huambo, a segunda província mais populosa de Angola, tem menos de 15 anos. Perante o estado actual da educação, qual será o futuro dessas crianças angolanas?

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