A Quarentena de Calumbo

As medidas tomadas pelo governo para conter a pandemia mundial do coronavírus (Covid-19) têm sido boas no papel, mas falta coordenação institucional para as colocar em prática com um mínimo de eficácia.

O caso do Centro de Quarentena do Calumbo, mais de 30 quilómetros a nordeste de Luanda, tornou-se, da noite para o dia, no termómetro da capacidade de resposta do governo à crise do vírus.

Pelas “falhas” que se têm aí verificado, o porta-voz da Comissão Interministerial para a Resposta à Pandemia, Franco Mufinda, tem a humildade de emitir um pedido de desculpas, conforme a reacção oficial na última parte deste texto.

Depois do encerramento das fronteiras nacionais na passada sexta-feira, dois voos excepcionais aterraram ontem em Luanda, provenientes de Lisboa (18h10) e do Porto (depois da meia-noite).

Célio Alberto, um dos passageiros do voo de Lisboa, queixa-se de as autoridades dividiram os passageiros para o cumprimento da quarentena. “Sem sabermos quais foram os critérios de selecção, as autoridades escolheram os passageiros que foram para o hotel de cinco estrelas Vitória Garden e os que foram enviados para o Centro de Calumbo”, diz o jovem.

Os passageiros destinados ao Centro de Desenvolvimento da Criança Nova Esperança, em Calumbo, município de Viana, tiveram de aguardar durante mais de três horas nos autocarros, sem que lhes tenham sido prestadas quaisquer explicações.

Os passageiros foram levados para o Centro de Quarentena do Caumbo, sem receberem quaisquer explicações. Vários dormiram no próprio veículo.

Manuela Silva relata, indignada, a jornada do aeroporto ao local de quarentena, onde chegaram por volta das 22h00. “No trajecto, com sirenes e batedores, fomos apedrejados na via como assassinos, como estando a trazer o vírus para matar os angolanos”, denuncia.

“Chegámos a este espaço sem sabermos para onde vínhamos. Chegámos aqui com ausência de informação de qualquer tipo e trazidos de forma autoritária”, desabafa Marta Silva, que se encontrava em Lisboa em tratamento médico.

Manuela Silva revela que só às 2h00 da madrugada chegaram alguns indivíduos não identificados, os quais deram início à montagem de camas individuais e beliches nos quartos do Centro de Desenvolvimento.

“Encontrámos os colchões ao relento, todos empoeirados e os quartos nunca antes habitados, em péssimas condições. As casas de banho nem sequer tinham papel higiénico”, revela a passageira.

As casas de banho do Centro não têm sequer papel higiénico.

“Uma médica que lá se encontrava de serviço disse-nos para irmos fazer as necessidades no capim. Nem nos permitiu perguntar-lhe como as mulheres o fariam no meio dos homens”, conta Manuela Silva.

Pouco antes, ao mesmo Centro chegaram os passageiros provenientes da cidade do Porto, a mais afectada pelo coronavírus em Portugal.

“Misturaram-nos todos, os passageiros do Porto e de Lisboa. Não havia espaço nem condições para estarmos separados. Ficámos aglomerados e não havia quem nos desse informações nem estabelecesse quaisquer procedimentos de controlo. Mediram-nos apenas a temperatura à chegada, nada mais”, lamenta Célio Alberto.

“Não havia espaço para todos. Puseram-nos 6 a 15 em cada quarto. Muitos de nós acabámos por dormir ao relento ou sentados nos autocarros. Há muitos mosquitos aqui e com estas condições estamos expostos a outras doenças”, diz Marta Silva.

A cidadã está esperançada em que o governo venha a proporcionar melhores condições para os passageiros em quarentena, mas é peremptória em afirmar que o local não foi preparado para acolher internamentos e continua a não estar.

Já Célio Alberto é céptico. “No meu quarto somos oito e temos de deitar no chão. Não há nenhuma cama. Só alguns colchões.”

“Aqui dentro vemos cinco ou seis pessoas a circular com batas e máscaras sanitárias e nem sequer sabemos quem é o responsável do centro ou a quem pedir informações. É um empurra-empurra, nenhum desses funcionários assume nada”, explica. Fora do Centro, conta uns cinco ou seis agentes policiais a rondar. Armas para os controlar e falta de informação, é essa a única certeza de que dispõem.

Reclamação comum entre os internados é a falta de alimentação. Os passageiros nem sequer tiveram direito a água, tendo entre si crianças, idosos e grávidas. Esta manhã, contam que receberam dois pães pequenos cada um, mas impróprios para consumo humano, uma garrafa pequena de água e uma maçã. Mais comedida nas palavras, Marta Silva diz apenas: “Não comi o pão porque não tinha aspecto fresco.”

Pães com bolor entregues aos internados da quarentena.

Manuela Silva e Célio Alberto denunciam não ter comido os pães “por causa do bolor” e reafirmam: “o pão tinha bolor”.

Alguns familiares dos internados estão a adoptar o modelo das cadeias, em que são obrigados a levar alimentos para os reclusos devido à incapacidade do Estado para prover alimentação suficiente. Desta maneira, como se pode respeitar escrupulosamente as regras de quarentena?

“Queremos cumprir com a quarentena, mas com comodidade. Não estamos a pedir conforto. O governo quer criar-nos outras doenças colocando 10 a 15 pessoas no mesmo quarto. Isso é desumano. É inaceitável”, critica Manuela Silva.

“A TAAG ligou-nos porque havia um voo de emergência para transportar familiares de ministros e outros dirigentes e podíamos aproveitar. Ninguém nos informou de que ficaríamos sujeitos a estas condições degradantes. Muitos teriam preferido ficar em Lisboa”, lamenta Manuela Silva.

Só ao meio-dia, as autoridades levaram ao local as malas dos passageiros, num contentor de 24 pés. Aqui, as autoridades criaram mais uma confusão. “Muitas malas vieram abertas, outras destruídas. Colocaram-nas na parte de fora do Centro e tivemos de fazer nova aglomeração, contra todas as medidas de prevenção recomendadas, para identificar e recolher as malas”, explica Célio Alberto.

Saúde pública

Uma médica de saúde pública refere que “estamos perante uma situação de promiscuidade habitacional, de um local fechado em que a respiração das pessoas é num espaço pequeno sem suficiente renovação de ar para tantas pessoas. Portanto, estamos a facilitar a transmissão da doença por via respiratória, embora o vírus seja transmissível por outras vias também”, assevera a médica.

Por sua vez, um outro médico critica o que considera ser “a desorganização do governo” na gestão do caso. “A Comissão Interministerial [para a Resposta à Pandemia] não criou as condições logísticas mínimas para albergar as pessoas. Tinha de ter feito antes um diagnóstico porque foi o governo quem mandou buscar esses cidadãos”, diz.

Segundo o também docente universitário, “tivemos um mês de preparação para enfrentar a pandemia. O que se vê agora é incompetência aliada a negligência. Não havia razão para se deixar as pessoas a dormir nos autocarros”.

De acordo com o médico, apesar de Angola ter anunciado apenas a existência de dois casos confirmados de cidadãos infectados com o coronavírus (Covid-19), “as medidas de prevenção devem ser mais drásticas para se conter a pandemia em Angola”.

Reacção oficial

O secretário de Estado para a Saúde Pública, Franco Mufinda, garante ao Maka Angola que estão a ser tomadas medidas de correcção no Centro de Calumbo para evitar a superlotação dos quartos. “Isto já foi revisto. Algumas questões levantadas já foram ultrapassadas. Em obediência às medidas de prevenção, uma parte dos pacientes já foi para o Hotel Infortur. Estamos a falar de 100 pessoas hoje [ao fim do dia]”, afirma.

Segundo o também porta-voz da Comissão Interministerial para a Resposta à Pandemia, para o Hotel Vitória Garden “foram as mães com bebés, crianças e idosos”.

“Cada um tem de desempenhar o seu papel. Estamos a fazer tudo para lidar com a pandemia. Estamos a comunicar cada vez mais. Infelizmente, o vírus chegou a Angola e temos de redireccionar as nossas políticas”, informa o porta-voz da Comissão Interministerial.

Entretanto, por volta das 21h00, Célio Alberto confirmou a este portal que, no grupo mencionado por Franco Mufinda, as cidadãs Marta Silva e Manuela Silva, com quem conversámos a meio da tarde, foram transferidas.

Mas os problemas de comunicação persistem desnecessariamente. “Veio um funcionário da saúde pedir-nos para fazermos uma lista de todas as pessoas que estavam a dormir ao relento e nos autocarros. Disseram-nos apenas que seriam transferidas para o Centro Militar de Cabo-Ledo. Não disseram que era para um hotel”, explica.

Com essa evacuação, alguns quartos passaram a ter menos pessoas. “Mas os que não tinham lençóis tiveram de ficar com os usados dos transferidos”, adianta Célio Alberto, que passadas as 21h00 continua a aguardar, com os outros, uma informação se haverá jantar ou não.

Franco Mufinda considera negativo o comportamento dos cidadãos “que fazem vídeos e barulho nas redes sociais” a criticar o governo sobre os passos que tem dado sobre a pandemia. “A nossa população ainda não percebeu. São poucos os países que tomaram medidas como Angola. Há falhas, mas estamos a corrigi-las”, reconhece.

E lembra que o governo tem estado a gerir os centros de quarentena, onde os internados têm de permanecer durante 14 dias, desde 3 de Fevereiro passado. Pelos centros de Calumbo I e Barra do Kwanza, o secretário de Estado Mufinda conta já terem passado mais de 100 cidadãos, incluindo vários estrangeiros.

“Continuamos a fazer correcções. Mais do que tudo, é importante que os cidadãos nessa situação cumpram rigorosamente os 14 dias de quarentena para não expor os demais”, afirma.

Sobre a alimentação, diz não poder confirmar as denúncias feitas pelos internados. “Concordo plenamente que as pessoas tenham de ser mais bem acomodadas. Pedimos desculpas pelas falhas”, enfatiza o secretário de Estado.

De resto, pede que os fazedores de opinião e a população em geral cooperem de forma solidária na prevenção do alastramento do vírus.

“Nota de Imprensa da Casa Civil da Presidência da República

A Casa Civil do Presidente da República informa que, tendo sido verificados constrangimentos no acolhimento dos cidadãos no Centro de Quarentena de Calumbo e considerando a necessidade de se garantir que as pessoas tenham o acolhimento e acomodação adequados perante as circunstâncias excepcionais actuais, o Presidente da República designou o General Pedro Sebastião, Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, para coordenar a Comissão Intersectorial de Gestão das Medidas Contra a Expansão do COVID-19, de forma a imprimir um melhor nível de organização de toda a acção de prevenção e luta contra a expansão do novo Coronavírus,  COVID-19.

A composição da Comissão mantém-se inalterada, passando a coordenação adjunta para a Ministra de Estado para a Área Social.

Agradecemos a compreensão dos cidadãos pelos constrangimentos ocorridos. O Executivo está empenhado neste processo e tudo fará no sentido de salvaguardar a saúde pública e o bem maior, a vida de todos os angolanos.

CASA CIVIL DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, em Luanda, aos 22 de Março de 2020″

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