Elite Boa, Elite Má

Estava ali a olhar para o mar, tranquilo e profundo, enquanto lia sobre um “terrorista elegante”, a meio de uma tarde cinzenta e irrelevante.

Um jovem aproximou-se, cumprimentou-me e sentou-se ao meu lado. Confidenciou-me que é um distinto membro da “elite boa”, filho de um alto dirigente do MPLA, com uma longa passagem pelo governo e pela Assembleia Nacional.

Com um tom sério de autoridade, apressou-se a explicar o que queria dizer por elite boa: a elite constituída pelos filhos do poder que, de forma discreta (na beque, como diz o povo), manifesta preocupação com o sofrimento do povo. Falou de como essa elite dispensa o exibicionismo e o esbanjamento dos fundos desviados do erário público. Aposta no empreendedorismo de mérito, distancia-se da manjedoura dos recursos do Estado e contribui para a criação de empregos entre os mais desfavorecidos.

Em suma, segundo o meu interlocutor, a elite boa são os filhos que não alinham com os pais na desgovernação de Angola e na manutenção da maioria dos angolanos nas catacumbas da ignorância e da submissão.

Pus-me a coçar a minha careca.

Longe de argumentar sobre o conceito de elite, boa ou má, em Angola, assunto que requer algum aprofundamento académico, ocorreu-me apenas ouvir. É preciso saber ouvir o outro. Porque a Angola independente é uma história de negação do outro, de exclusão sociopolítica.

Torna-se cada vez mais urgente reflectir sobre a importância do contraditório, da escuta activa e da tolerância. A radicalização do discurso, alimentada por impulsos irracionais e polarizações simplistas, continua a corroer o tecido social angolano. Afasta-nos da possibilidade de construção colectiva para o bem comum. Devemos assegurar que todos possam ser ouvidos, respeitados e confrontados com argumentos, não com insultos.

Ouvir o outro com genuína curiosidade, buscando entender a raiz da sua visão do mundo, pode ser o gesto mais revolucionário num ambiente contaminado pela intolerância política.

É preciso desarmar o espírito beligerante que domina o discurso público nacional e promover a cultura do diálogo, onde as divergências não são ameaças, mas sim oportunidades de aprofundamento. A tolerância, nesse sentido, não é fraqueza — é maturidade política e emocional.

Uma Angola plural não se constrói com a imposição de verdades únicas, mas com o encontro entre vozes diferentes que se respeitam e aprendem umas com as outras.

Um presidente beligerante

O último exemplo de conduta beligerante e de exclusão política é a recente entrevista, à TPA, do presidente do MPLA e da República, João Lourenço. De forma hostil e anti-reformista, Lourenço excluiu a possibilidade de surgirem membros do seu partido a perfilarem-se como candidatos à sua sucessão no congresso do MPLA, em 2026, sem a sua aprovação. Ao negar a abertura e a democratização interna do MPLA, Lourenço enviou um sinal claro à sociedade de que, no seu entendimento, o presente e o futuro do MPLA dependem exclusivamente da sua vontade pessoal e, por arrasto, o país inteiro deve continuar refém do seu aparente poder ou ego supremo.

Tal comportamento contraria os estatutos do MPLA. Na “lei interna” deste partido, estabelece-se que, na constituição dos órgãos do Partido, é possível a candidatura de uma ou mais pessoas para os cargos singulares, bem como a apresentação de uma ou mais listas para os órgãos colegiais. As eleições para os cargos electivos decorrem de forma livre, sem qualquer tipo de pressão sobre os eleitores para escolherem determinado candidato. Aos eleitores é garantida, caso o desejem, a possibilidade de colocarem questões aos proponentes ou aos próprios candidatos, conforme estabelecido nos Estatutos e regulamentos em vigor.

Uma leitura destas normas indica que João Lourenço estará a violar directamente os estatutos do seu partido. Já se sabe que ninguém vai assumir que é de uma violação que se trata. Surgirão as interpretações atípicas ilibando o líder. Todavia, bastará uma leve viragem em 2027 para se decidir que o presidente do partido violou de facto os estatutos. E, como aconteceu com o seu antecessor, o malogrado José Eduardo dos Santos, poderá surgir uma onda de pressão a querer afastá-lo dos órgãos ou mesmo do partido.

E este é um dos problemas angolanos. Usa-se a lei para fins políticos e de poder e ignora-se a sua aplicação geral. Quantos lutam pela aplicação da lei de forma igual para todos? O número tem de ser crescente, público e resoluto.

De forma previsível, a hostilidade de Lourenço à propalada intenção de Higino Carneiro em concorrer, por vontade própria, às presidências do MPLA e da República, ou de qualquer outra alternativa ao seu comando, gerou uma ordem de manifestações públicas do MPLA. Era preciso transformar Higino Carneiro no mal do MPLA. É o poder da irresponsabilidade política.

Os irresponsáveis não assumem culpas. Engendram a imposição do medo, usando os filhos do povo, nas forças de defesa e segurança e nas milícias de desestabilização psicossocial, para garantirem a manutenção do seu poder. Sempre avisados, preparam os seus exílios dourados no exterior do país, porque, no fundo, também têm medo.

São essas políticas de exclusão – blindadas pela violência política e pela corrupção sistémica – que têm permitido a longevidade, de meio século, da mediocridade e da pilhagem impune dos recursos do país por um grupo de dirigentes. Por isso, ao longo dos anos, permitimos a consolidação estrutural da delinquência política.

Momento-chave para a mudança

Angola atravessa uma fase crítica. Há uma saturação política devido à desastrosa situação socioeconómica e ao contínuo estrangulamento da administração pública.

Esta é a melhor oportunidade para se operarem mudanças radicais de mentalidade sobre o poder político, as suas relações com o povo, a organização e o funcionamento do Estado e as inúmeras possibilidades de transformação da sociedade para o bem comum.

Com efeito, é contraproducente categorizar as pessoas como boas ou más, porque falta ao país uma bússola moral que separe o trigo do joio. Quem define quem é bom e quem é mau? Esse tipo de categorizações reproduz a cultura da exclusão, da alienação do outro, por uma questão de aparente conforto moral.

Há, em contrapartida, o caminho da inclusão. Todos somos poucos para fazermos um país melhor. Se queremos um país que avance, temos de abandonar a trincheira da radicalização imbecil e abrir espaço para o entendimento. Essa é a Angola que vale a pena imaginar.

Temos de lutar, cada um com o seu saber e as suas possibilidades, para estabelecermos uma estrutura de poder virado para a inclusão. Um poder com sentido de missão, que reforme e invista na educação – como prioridade – para formar o capital humano que garanta a gestão competente e eficaz do país, bem como assegure a sua soberania no concerto das nações.

A inclusão passa pela descentralização do poder, assim como pela implementação de reformas da administração pública, dos sistemas judicial e eleitoral, que são fundamentais para a boa governação e para um sistema político aberto à fiscalização e ao julgamento pelo eleitorado.

Só assim poderemos falar da protecção efectiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos – os soberanos constitucionais da pátria. Portanto, a soberania reside no povo e não na elite, seja ela boa ou má.

Quem quer ajudar o povo?

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