Novo Constitucionalismo em Angola

A Constituição angolana de 2010 não foi uma verdadeira nova Constituição, mas uma mera revisão da Lei Constitucional de 1992, validada pelo Tribunal Constitucional, e carece de legitimidade material. É verdade que seguiu todos os procedimentos formais para ser promulgada e entrar em vigor, mas não desempenha a função essencial de uma Constituição, que é ser um elemento unificador da nação e criar uma ligação fluida e consensual entre governantes e governados.

O problema da Constituição de 2010 não está nas soluções técnicas, bem engendradas pelos reputados académicos da altura, pretendendo corresponder aos desejos, anseios e medos de José Eduardo dos Santos. O problema está em algo mais simples: a população não se revê na lei fundamental, existindo um abismo cada vez maior entre as elites e o povo. O alargar desse fosso é explosivo.

Precisamente para diminuir esse espaço de dissenso, para que a comunidade política se sinta um actor participante da boa governação e entenda ser bem representada pelos órgãos do poder político, é necessária uma nova Constituição em Angola.

«Nova Constituição» não significa uma nova cópia de um modelo estrangeiro, ou uma nova mistura, mais ou menos atípica. Aliás, a atipicidade da Constituição angolana é um mito, mas esse é assunto para outra ocasião.

Uma nova Constituição deveria de ser algo orgânico, que começasse por emanar da comunidade, da sociedade, e que garantisse o fim do divórcio entre as comunidades e as elites. Portanto, não começaria de cima para baixo, com uma imposição de uma comissão de sábios ou mesmo de um parlamento, mas deveria iniciar-se pela auscultação das comunidades locais espalhadas ao longo do país, respeitando as suas tradições próprias e os seus modos de participação. Neste caso, não haveria imposições de modelos democráticos formais, mas sim respeito pelas várias formas de consentimento existentes nas diversas comunidades. Só depois desse processo real de deliberação participativa se avançaria para a formalização de uma proposta constitucional, que teria em conta o sentir das populações, o direito comparado e a prática constitucional, em que se inclui a jurisprudência.

Não vale a pena escrever normas muito bonitas que ninguém respeita nem aplica. É importante ter um sentido realista do direito. O direito não é aquilo que está escrito, mas sim o que é aplicado todos os dias nos tribunais e em todas as instâncias decisórias.

Pensar que existe um soberano absoluto que tem a capacidade de impor uma Constituição é um mito. O poder constituinte é evolutivo, tem uma natureza mais histórica do que normativa. Isto quer dizer que depende mais dos factos no terreno do que do que está escrito. Os ecossistemas de forças é que vão fundando aquilo que uma Constituição de facto é. E é essa realidade que se deve reflectir na nova Constituição angolana.

Se a criação da nova Constituição deve obedecer a este processo orgânico, histórico e selectivo, o seu conteúdo deve ser simples, tentar estabelecer o laço participativo entre governantes e governados, ao mesmo tempo que garante um governo eficiente, tão necessário no momento turbulento que atravessa, de novo, o continente africano.

Uma nova Constituição deveria, embora dependa da opção da comunidade política, encarar temas actuais, como a criação de novos mecanismos para aumentar a participação dos cidadãos nos processos de consentimento político. Igualmente, tem de ocorrer uma reflexão sobre o papel dos costumes, do pluralismo jurídico e da ancestralidade, ao passo que vários assuntos contemporâneos – como a regulamentação sobre a utilização de dados pessoais e a protecção da privacidade, as regras para a utilização responsável de inteligência artificial e a protecção contra o seu uso indevido, bem como o acesso à internet como direito fundamental – devem também ser encarados.

A educação e a saúde já não são meros complementos constitucionais, esquecidos numa ampla secção de direitos económicos e sociais de aplicação pouco clara. São o esteio essencial do desenvolvimento de uma sociedade, e fundamentalmente necessários em Angola. Nesse sentido, devem ter um tratamento constitucional que vá além do programa de boas intenções e que seja realista, criando verdadeiros instrumentos de progresso social, permitindo sobretudo uma aproximação flexível e técnica aos assuntos, em vez de impor uma abstracção geral que impede soluções pragmáticas.

Dá cada vez mais a ideia de que em África – e em países de outros continentes começa a verificar-se o mesmo – as eleições são processos de vida ou morte que contribuem para a violência, em vez de a aplacar. Por isso, devem ser procurados processos diferentes de participação pública, mais frequentes, mais amplos, que evitem esse tudo ou nada em que se tornaram as eleições.

Usando uma metáfora pedagógica, talvez fosse altura de diminuir o peso dos exames finais (eleições) e implementar métodos de avaliação contínua.

O mais importante a reter é a necessidade de procurar uma nova Constituição que seja consensual e corresponda aos anseios dos angolanos, diminuindo o fosso entre governantes e governados, elites e povo, e que, desta vez, deixe a larga maioria – de um lado e do outro do espectro político e da comunidade – satisfeita.

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