Os Estatutos da Fome e os Espelhos do Palácio

Enquanto o país se afunda sob a liderança do MPLA, o partido realizou um congresso extraordinário, de 16 a 17 de Dezembro passado, para mudar estatutos e algumas pessoas, bem como para reforçar o poder daqueles que presidem à incompetência, ao desbaratamento das riquezas e ao descalabro social.

Poderia ter sido um congresso extraordinário para discutir soluções necessárias para inverter a calamitosa situação socioeconómica do país e o desespero dos angolanos. Porém, do congresso não saiu nenhuma recomendação para um plano de emergência que gere empregos e ponha o povo a trabalhar de forma condigna e a contribuir para a criação de rendimento. Nem uma ideia nova, muito menos um programa partidário adequado ao tempo presente e preparado para o futuro. Apenas se falou de pessoas e de cargos, sobretudo de pessoas que já provaram a sua incompetência noutras funções e que por isso são promovidas.

É o MPLA que governa. É o MPLA que ignora o povo e destrói o futuro dos angolanos.

Perante o que se fez neste congresso extraordinário, perguntamos: e agora, o povo vai-se alimentar dos novos estatutos do MPLA?; e agora, a juventude vai encontrar empregos nos novos estatutos do MPLA?; e agora, haverá juízo no governo por causa dos ajustes nos estatutos do MPLA? Afinal, o que é o MPLA, para que serve e a quem serve? Para que servem os novos estatutos?

No Palácio Presidencial deve haver muitos espelhos. O que será que, sempre que se olha ao espelho, o presidente João Lourenço vê? O que pensa que está a fazer? Esta mesma pergunta deve ser feita a cada um dos membros do Comité Central do MPLA, do governo, dos serviços de defesa e segurança e da administração pública do Estado.

Quando se olham ao espelho, todos eles se devem questionar sobre as suas acções enquanto cidadãos incumbidos de dirigir a vida de milhões de angolanos. O que estão a fazer? E como?

Do congresso extraordinário, não saíram reformas para a democratização interna do MPLA. Assim, por exemplo, continuam a não existir normas que rejam as candidaturas à presidência do MPLA. Se um militante quiser candidatar-se à Presidência da República, como deve proceder? Não se sabe. Aparentemente, na prática, deve pedir uma audiência ao actual presidente da República, o que, como é por demais evidente, não faz sentido algum.

A actual destabilização do MPLA é, efectivamente, a destabilização da República, porque o MPLA é o único partido que governa Angola desde a independência, há quase 50 anos.

Não se aproveitou a ocasião para colocar sobre a mesa um plano de emergência que permita aplicar os fundos, que até hoje têm sido largamente desperdiçados, para sair da crise económica, para reformar a administração do Estado e da justiça, e para reorganizar as instituições do Estado. O MPLA pretende, portanto, continuar a governar à revelia do bem comum.

No final, foi todo um espectáculo de João sobre Lourenço, presidente da República e do MPLA, com centenas de marionetes a baterem palmas. Foi apenas uma feira de vaidades, sob o lema da renovação dos estatutos.

Os cidadãos comuns também devem olhar-se ao espelho e colocar-se algumas questões. Muitos, infelizmente, não têm sequer um espelho. Todos devem, porém, perguntar-se a perguntar aos seus familiares e amigos o que vêm neles e porque se deixam governar assim. Qual é o papel de cada um de nós, enquanto cidadãos, na construção ou destruição da vida dos angolanos e de Angola?

Mas porquê esta imagem dos espelhos? A verdade é que continuamos a ser governados pela vaidade e pela casmurrice. Por isso, não há nem haverá condições para um terceiro mandato. João Lourenço sai do poder em 2027. Logo, sem o poder da Presidência da República e dos instrumentos de poder e coacção legal que esta função implica, qualquer outra mancomunação de controlo do poder por via partidária ou ama-seca é pura ilusão.

Porquê?

Depois de 38 anos de controlo do poder por José Eduardo dos Santos, João Lourenço – que foi o seu sucessor escolhido a dedo – tinha a obrigação de ser criativo e reformista para mudar o país. Tinha de ganhar a confiança dos cidadãos e dos sectores estratégicos e, por mérito próprio, orquestrar a extensão do seu mandato ou poder. Em sete anos de presidência, o seu carácter anti-reformista e a sua falta de criatividade política são indisfarçáveis. Piorou o que já estava mal.

Mesmo um regime autoritário como o angolano exige algum nível de competência, organização e sofisticação. Ao longo da história, houve regimes autoritários que tiveram resultados positivos, sobretudo para acelerar o desenvolvimento de um país. Em Angola, porém, nada foi acelerado a não ser a pilhagem, a miséria e a fome.

Os factores políticos e institucionais

Primeiro, por causa dos factores políticos e institucionais. Por falta de uma orientação política clara, o presidente tem confundido e alienado as bases e as estruturas intermédias e de comando do MPLA. E tem colidido com as bases de apoio do MPLA, destruindo-as e substituindo-as por discursos vazios e práticas nocivas. As recentes eleições no congresso da Juventude do MPLA (JMPLA), em que houve mais votos do que eleitores, é o último exemplo de como Lourenço abraça as suspeitas de fraude grosseira dentro do próprio MPLA e a sua veia antidemocrática.

Tem enfraquecido cada vez mais as instituições da administração pública com contradições absurdas. O seu anunciado combate à corrupção é um bom exemplo disso mesmo, tendo-se instrumentalizado o sistema judicial, ele próprio alvo de suspeitas de venalidade – ou seja, de corrupção. Enquanto isso, Lourenço parece promover abertamente a captura do Estado pela sua entourage. Esta é a espada de Dâmocles sobre Lourenço.

Ouvidos de mercador

Em segundo lugar, temos a situação socioeconómica do país. A este respeito pode dizer-se que houve um retrocesso de cerca de 30 anos. É este, aliás, a principal causa da extrema impopularidade do presidente Lourenço e da consolidação do descontentamento da população contra o poder do MPLA, incluindo de milhares de militantes, que também são afectados pelo desemprego e flagelados pela fome.

“O país está, portanto, perante uma situação muito grave. O descalabro social é evidente, a pobreza das populações é extrema, o desespero começa a invadir muitos corações. É o momento da verdade. Os que falharam devem assumir modestamente os seus erros” – eis as palavras de José Eduardo dos Santos na sua mensagem à nação, em 1996.

Dos Santos atribuiu o descalabro social, “em grande medida, à aplicação de programas económicos que redundam inevitavelmente numa grave inflação permanente, que implicam uma redução contínua dos salários reais e de que resulta o quase completo abandono das funções sociais do Estado e a destruição da administração pública”.

“Dito noutras palavras e de forma clara: estamos perante o colapso efectivo e total da actual filosofia básica de actuação no domínio económico […] e da própria actividade governativa”, disse nessa altura JES. Infelizmente, o mesmo se aplica hoje como uma luva ao governo de Lourenço.

Por reconhecer o que estava mal, José Eduardo dos Santos afastou muitos dos governantes por incompetência. Os mesmos que hoje pontificam no governo de Lourenço, nomeadamente o actual ministro de Estado da Economia, José de Lima Massano.

Como se tem dito, a população é o melhor barómetro para aferir o desempenho do governo. Quais são as medidas adoptadas pela equipa económica que claramente servem os interesses da população? Quais têm sido os benefícios e as consequências das políticas económicas de Lourenço para a maioria dos angolanos?

Os rendimentos da absoluta maioria das famílias angolanas continuam e continuarão a cair com o aumento dos custos da economia de compadrio solidificada pelo governo de Lourenço. A economia de compadrio assenta na captura das receitas e dos recursos do Estado por grupos de interesses instalados no poder, que os utilizam para realizar outras vidas no exterior do país. A equipa económica apenas responde aos interesses do presidente, cuja visão para o bem comum dos angolanos parece ser nula.

Temos uma política orçamental inflacionista, com o Orçamento Geral do Estado a gastar mais do que arrecada, estimulando a desvalorização do kwanza. O intervencionismo absoluto e incoerente do governo na economia tem levado o sector empresarial privado à ruína. Prosperam apenas os que fazem parte do circuito fechado do poder.

O presidente e José de Lima Massano – actual piloto do falhanço económico – mostram-se totalmente indisponíveis para ouvir. Enquanto isso, bombardeiam a sociedade com números e floreados que não reflectem as realidades das famílias e dos agentes económicos.

Ou seja, como diz o povo, Angola é Lunda: tão-somente um local de extracção de riqueza e empobrecimento satânico das comunidades nela radicadas.

A militarização do poder

Para o sucesso de um regime autoritário, a lealdade e a organização das forças castrenses é fundamental: é preciso impor o medo e usar de medidas repressivas – como a intimidação, as detenções e a violência contra as vozes discordantes – para manter o poder.

Todavia, a sua gestão das forças de defesa e segurança levada a cabo por João Lourenço parece pautar-se pela arbitrariedade, a desestruturação e a consequente instabilidade e insegurança, o que elimina qualquer sentido de lealdade que pudesse existir em relação à sua pessoa.

A confusão começa no topo da hierarquia, com os profissionais de carreira. Exemplificamos.

No dia 3 de Março de 2018, o procurador-geral da República, general Hélder Pitta-Groz, deslocou-se ao gabinete do então chefe de Estado-Maior das FAA, general Geraldo Sachipengo Nunda, para exigir a sua autodemissão, numa cabala que o posicionava como suspeito de envolvimento na “burla tailandesa”. Nunda recusou-se, João Lourenço exonerou-o. A seguir, Nunda foi ilibado da suspeita de associação criminosa, entre outros crimes, como inicialmente a PGR o acusara. O general Nunda era uma figura muito respeitada quer pela nomenclatura, quer pelos oficiais subalternos e soldados das FAA (ver aqui). 

Na polícia, deu-se o caso do comandante-geral da Polícia Nacional, comissário Paulo de Almeida. A 17 de Janeiro de 2022, o comandante participava na Reunião Interministerial de Defesa e Segurança dos países da África Central, em Brazzaville, por ordem do presidente João Lourenço. A Presidência telefonou-lhe a meio da reunião para lhe comunicar que acabava de ser exonerado e tinha de abandonar a sala e regressar ao país. A mesma sorte coube ao general Eugénio Laborinho, a 31 de Outubro passado. Soube da sua exoneração do cargo de ministro do Interior através das redes sociais, quando se encontrava em tratamento médico no exterior do país, sob autorização do comandante-chefe. Laborinho era um dos seus cabos mais leais, mas foi fustigado por uma campanha pública palaciana que o associou ao “contrabando de combustíveis”. Até agora, contudo, as autoridades judiciais mantêm silêncio sobre o assunto.

O sucessor de Paulo de Almeida, o comissário-geral Arnaldo Carlos, cumpriu menos de três dos quatro anos do seu mandato e foi “pontapeado” para o cargo inferior de secretário de Estado do Interior, a 8 de Novembro passado.

Por fim, mas não menos importante, os militares queixam-se cada vez mais de fome – não lhe é sequer assegurada a alimentação. Também denunciam as condições sub-humanas de acomodação nos quartéis, a falta de meios de higienização pessoal e de equipamentos. Há uma desmoralização generalizada; engrossam as fileiras de descontentes, e há dezenas de generais a serem desmobilizados sem que recebam compensação condigna pelos anos de sacrifício que dedicaram à pátria.

A personalidade de Lourenço

Além das questões acima mencionadas, outro aspecto relevante e impeditivo da continuidade directa ou indirecta de Lourenço no poder, para lá do mandato constitucional de 2027, é a sua personalidade.

A sua forma básica e impreparada de actuação gerou um governo desavindo, um MPLA sem cabeça e a insegurança nas forças de defesa e segurança – o que gera instabilidade política e põe em risco o processo de democratização.

Devido às falsas promessas, às injustiças aberrantes e à falta de empatia para com o sofrimento da maioria, Lourenço alimenta um clima de hostilidade entre a população, quer em relação à sua pessoa, quer em relação aos que o rodeiam.

Além disso, neste momento, Lourenço não reúne um único dos três principais requisitos para ser um líder autoritário por mérito próprio, após o termo do seu mandato em 2027: o carisma, o populismo e a manipulação das reivindicações sociais de forma a inspirar devoção e lealdade.

Carisma não tem nenhum. Tentou o populismo, com o seu discurso de luta contra a corrupção. Fê-lo, porém, sem ter reformado nem organizado a administração do Estado. Agiu sem elaborar um plano de dignificação do funcionário público que permitisse moralizar tornar o Estado eficiente, através da competência, da meritocracia e de salários adequados à realidade. Resultado: actualmente, a administração do Estado terá voltado a ser sinónimo de corrupção, a lei que nos governa no quotidiano. Lourenço fez ainda pior, quando, aparentemente, instrumentalizo um poder judicial conspurcado pelas suspeitas de corrupção ao seu mais alto nível. Ter-se-á enredado na captura do Estado. Ignorou o povo e os seus lamentos. As suas intervenções públicas já não comovem ninguém, provavelmente nem sequer a si próprio. Quanto à manipulação das reivindicações sociais, neste momento, nem sequer a oposição representada no parlamento consegue fazê-lo, tal a sua apatia.

Lourenço sedimentou aquilo que José Eduardo dos Santos desabafou na reunião do Bureau Político do MPLA, em 1996: “Houve mesmo um abandono das funções sociais do Estado, o que criou a opinião de que o governo é insensível aos gritantes problemas sociais […].”

Portanto, o presidente tem apenas tempo para preparar uma transição que lhe permita entregar a presidência e os comandos do MPLA à escolha democrática do povo e dos militantes deste partido. Tem de implementar reformas institucionais e constitucionais que permitam organizar e entregar, de forma ordenada, uma administração pública e de justiça e forças de defesa e segurança comprometidas com o bem comum. Este é o acto patriótico, de redenção e de consideração para com o povo angolano que se espera de Lourenço e que lhe poderá garantir segurança e tranquilidade, assim como a estabilidade da nação. Tudo o resto é confusão. Boas festas!

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