Angola: Qual é o Plano?

Chegámos a um momento da nossa história em que a mudança é obrigatória. Não me refiro, naturalmente, a mudar uma cara por outra, ou mesmo um partido por outro. Refiro-me a uma mudança profunda, a um verdadeiro recomeço.
Para recomeçar, é preciso um plano que defina as linhas gerais do novo caminho. Qual é, hoje, o plano para Angola? Que rumos foram delineados para alcançar o bem comum e superar as principais crises que a sociedade enfrenta?
Há uma vaga nacional – passiva – de desmoralização, de frustração, de desencanto, de desemprego, de fome, de desespero e de abandono colectivo da esperança por um país melhor. Falta ambição. Faz-se tudo pela pequenez e parece que todos esperam pelo capricho dos detentores de poder ou de quem os substitua.
Em resposta, quem governa parece cada vez mais distante e insensível ao sofrimento do povo. Com efeito, os governantes perderam a réstia de confiança que em tempos a população neles depositou.
A principal crise dos angolanos é a sintonia entre o imobilismo do povo e a inacção dos potenciais fautores de mudança.
O povo parece submeter-se resignadamente à sua condição socioeconómica. E nota-se que os sectores cívico-intelectuais e esclarecidos, que deveriam servir de catalisadores para a mobilização da sociedade, debatendo novos rumos para o país, cederam à inacção. Faltam lideranças proactivas que lutem pelo bem comum.
Muitos cidadãos envolvem-se em manifestações que espelham a sua frustração, mas não lhes trazem respostas. As redes sociais servem de muro das lamentações e das ofensas, mas também nada resolvem. Os partidos políticos, que deveriam canalizar os anseios dos angolanos, não passam de grupos de guerrilha preparados para manter ou tomar o poder, sem ligação à realidade da institucionalização de um país. Não há um projecto de nação inclusivo e acima dos partidos políticos.
O país continua adiado e refém da bipolarização entre os antigos movimentos de libertação nacional, o MPLA e a UNITA. Contudo, os programas dos dois partidos quase não diferem. As diferenças residem nas ambições pessoais, nos estratagemas rentistas das elites, na concorrência pela posse das riquezas, reais ou imaginárias. O país ainda está num estádio pré-institucional, dependendo de pessoas e não do normal funcionamento das instituições.
Temos um país bloqueado.
Então, qual é o plano para sair da crise, para que o país tenha rumo? Qual é o plano para o bem comum? São duas grandes questões que todos os angolanos devem manter presentes.
Urge gerar e debater ideias que contribuam, primeiro, para a formulação de uma visão comum para o futuro do país. Só com uma visão comum se podem articular os valores que faltam para projectar uma alternativa viável para o país: a união em torno de uma causa comum, a confiança no saber e na capacidade de organização, a valorização da vida humana e a dignificação de cada angolano.
Visão, ideias e plano são os elementos fundamentais para a mudança e a institucionalização do país.
Para já, a sociedade tem de ser mobilizada no sentido de gerar pressão para que a educação se torne “na política mais estratégica do país”, como aconselha um eminente intelectual angolano. É preciso mudar, de forma radical, o modelo de ensino.
Não haverá planos sérios e realistas para Angola que não passem pela educação. Um antigo governante recorda que, até recentemente, Angola gastava anualmente cerca de mil milhões de dólares em assistência técnica (consultorias por firmas estrangeiras) por causa da falta de investimentos sérios na educação. Por conta da crise económica, nota o ex-governante, a consultoria externa consome hoje uma média anual de 500 milhões de dólares. E qual é o resultado real que estas consultorias, tão caras para o Estado, trazem para dirigentes, gestores públicos e chefes da administração pública?
Não haverá liberdade real para as cidadãs e os cidadãos sem um modelo de educação que eleve o seu nível de pensamento social, que contribua para a geração de rendimento próprio, para a iniciativa criadora, o bem-estar e a autonomia individual.
A educação é o ponto de partida para a mudança.
A terceira via
Como parte do processo cívico-político, é tempo de estruturar um movimento abrangente, inclusivo e eminentemente liderado por sectores da sociedade civil – a terceira via – que ultrapasse os vícios dos partidos políticos tradicionais e dos seus líderes.
O vício principal, comum ao MPLA e à UNITA, é a sobreposição dos interesses partidários aos da nação, a simples acumulação de poder pelos seus líderes e a subjugação dos seus militantes ao sectarismo político.
Tendo nascido como movimentos de libertação, os dois partidos têm uma base ideológica enraizada na doutrina da subversão da ordem, de destruir em vez de reformar. Para destruir, basta uma ordem. Para reformar, é preciso muitas ideias, muitas discussões e um envolvimento inclusivo. Reformar dá trabalho.
A lógica existencial do MPLA assenta na manutenção do poder e na captura do Estado para disposição arbitrária e impune dos recursos do país a favor dos beneficiários escolhidos por quem manda. Já a lógica existencial da UNITA é a tomada do poder como um direito para os seus dirigentes, conforme o espírito de Muangai, sem um plano convincente e inclusivo para a edificação de um Estado funcional. Estas duas forças constituem, assim, dois pólos opostos que se retroalimentam há décadas, tirando partido do enfraquecimento dos angolanos e da erosão da consciência nacional.
Hoje, temos um governo que nem sequer é capaz de promover políticas de manutenção de poder que mantenham os preços da cesta básica compatíveis com os salários que paga à função pública. Só se fala, como aparentes realizações, de políticas macroeconómicas e infra-estruturas. Governa-se para os números e não para as pessoas. O acesso a uma cesta básica económica afigura-se elementar para a garantia de alguma estabilidade social. A fome generalizada é sempre uma incubadora de perigos contra a ordem ou desordem estabelecida.
As três medidas estruturantes
Para encetar o necessário recomeço e a construção institucional do país, propõem-se três medidas estruturantes, que deverão garantir um corte dramático, mas tranquilo, com o passado frustrante.
A primeira é, obviamente, uma nova Constituição. Na verdade, o país ainda não teve uma Constituição consensual fruto da vontade popular. Andou de imposições em imposições, nunca reconhecendo um texto saído da espontaneidade orgânica da população.
Com a independência, em 1975, a Lei Constitucional importou os absurdos ditames marxistas que apenas serviram para legitimar a destruição do país recém-nascido.
Embora contendo os embriões de um Estado democrático e de direito, em 1991/1992 aprovou-se, apressadamente, uma Lei constitucional “cozinhada” para a realização de eleições. Estas serviram de esteio para o retorno à guerra, na sua forma mais mortífera e destrutiva.
Finalmente, em 2010, os dirigentes políticos persistiram no erro ao inventarem uma Constituição nova que, afinal, não era nova. Consistia numa mera revisão da Lei Constitucional de 1992, que consagrou um modelo imperial com aparência democrática. Trata-se de um logro constitucional. É tempo de criar uma Constituição elaborada de acordo com a vontade real do povo e que permita um recomeço consensual em Angola.
Em segundo lugar, o Estado e a Administração. Não adiantam discursos se a máquina estatal não executa. Vivemos uma época de ficção em Angola – as notícias da comunicação social estatizada são disso espelho. Não há qualquer relação entre a realidade do país e a propaganda do governo.
Temos discursos com números e realidades que não existem na prática. Isto quer dizer que o Estado não funciona.
É fundamental reformar o Estado para criar um Estado de Direito funcional. Isto é, um Estado que respeite a lei e, sobretudo, a justiça. Tem de ser um Estado que garanta às pessoas aquilo de que elas precisam: educação, tratamento igual, desenvolvimento humano, cumprimento das promessas e bons serviços públicos.
Finalmente, a economia. A reforma económica deve começar pelo essencial: a reforma agrária.
Veja-se um mero exemplo. Em 1973, Angola era o terceiro produtor mundial de café. Produziu 243 780 toneladas. Passados 50 anos, no seu discurso sobre o Estado da Nação de 2023, o presidente João Lourenço anunciou – como grande vitória – que o país produziu 5 000 toneladas de café. Ora, em 2017, no último ano da era do seu antecessor, o país produziu mais. Foram 8 000 toneladas de café. Como se explica isto? O que mais se pode dizer?
A reforma agrária é um imperativo. Só com o aumento da produção alimentar interna será possível criar as condições efectivas e económicas para a redução da fome no país. Um dos principais obstáculos ao relançamento eficaz da agricultura é a falta de definição de direitos de propriedade e a existência de latifúndios pertencentes às oligarquias que pouco ou nada produzem. Segue-se o desprezo pelos pequenos agricultores. Essa reforma tem de assentar na definição dos direitos de propriedade, na extinção dos latifúndios improdutivos e na promoção do pequeno e médio agricultor. O certo é que temos de ultrapassar o presente bloqueio, e é com esse objectivo em vista que aqui deixamos algumas ideias para discussão e deliberação construtiva e democrática.