Paralisia e Nova Constituição

Aproxima-se a inauguração do ano judicial de 2023, mas a justiça paralisou. O procurador-geral da república (PGR) está demissionário, enquanto o presidente do Tribunal Supremo se encontra desacreditado, debaixo de fortes suspeitas na opinião pública.

A cerimónia de início do no judicial em Março, a realizar-se nestes termos, será digna de uma novela surrealista: uma liturgia solene dirigida por um presidente da República atónito, rodeado por duas inexistências institucionais, num momento em que a magistratura judicial atravessa uma crise de credibilidade nunca antes vivida, nem sequer no tempo dos tribunais populares colectivos dirigidos por alfaiates, que talvez tivessem o bom senso que agora falta. A par disto, a Assembleia Nacional terá iniciado procedimentos com vista ao apuramento dos factos relativamente aos gastos da presidente do Tribunal de Contas, Exalgina Gamboa.

Não se trata aqui de atribuir culpas nem de proferir juízos de valor sobre incompetência ou acusações de corrupção, mas sim de verificar um facto simples: a justiça foi decapitada. E está assim há largos meses.

Como pode um país que assumiu como prioridade o combate à corrupção chegar ao ponto de ter os seus cargos de liderança judiciária paralisados? Na verdade, até se entende. Todos estão à espera da palavra do presidente da República, pois, no fim de contas, ele é constitucionalmente responsável pelas nomeações, quer do presidente do Tribunal Supremo, quer do PGR. E é neste simples facto que entronca a Constituição (CRA) aprovada em 2010, o que obriga a pensar na sua eventual substituição.

A realidade é que os redactores da CRA, num excesso de zelo, criaram uma figura presidencial impossível. Deram tal centralidade ao presidente da República, que o sistema constitucional não funciona sem que ele tome iniciativa. Se, por alguma razão, o presidente não age, tudo pára.

Na verdade, este desenho presidencial é uma armadilha para o próprio presidente, pois coloca-o como responsável de todos os males do país. Chove, a culpa é do presidente; faz sol, o Presidente é o responsável.

A graxa jurídica foi longe demais e criou um poder inviável. Ninguém se mexe sem a ordem presidencial. Os ministros são auxiliares, por isso só auxiliam quando lhes é pedido auxílio; o poder judicial depende de nomeação presidencial, pelo que só toma medidas de fundo quando vê um sinal do palácio, e assim sucessivamente.

A figura presidencial esculpida na CRA é a de um cabo-de-guerra que tem de conduzir um exército em batalhas, e não a de um líder de progresso e prosperidade, uma referência para a sociedade. Nessa medida, a CRA constituiu um anacronismo, um reflexo do passado de violência, e não um programa para o futuro. E esta é a segunda razão que faz da CRA uma constituição de dissenso e não de consenso.

A CRA foi aprovada em 2010, ainda no rescaldo da guerra civil e das primeiras eleições após essa guerra, realizadas em 2008, quando o MPLA obteve cerca 80% dos votos. Não foi uma constituição surgida de um poder constituinte abrangente e deliberativo, mas de uma imposição dos vitoriosos.

Possivelmente, na época não poderia ter sido diferente. Para garantir a união do país, era necessário forçar uma estrutura jurídica bem apertada, mas isso fez com que a CRA nascesse com um problema genético fundamental: a CRA é uma norma centrada no passado e voltada para o passado, e não para o futuro.

Hoje, a sociedade exige um Estado activo a favor do cidadão, um presidente que seja um líder nacional num sistema institucional que conte com a deliberação de vários poderes, uma participação mais intensa das autoridades tradicionais e da sociedade civil, um poder judicial digno e independente, uma atenção especial à angolanidade na vertente das suas línguas nacionais, do ordenamento do território e da especificidade cultural de cada região.

Para que tal aconteça, deveria ser elaborada uma nova Constituição que ultrapassasse o passado e as suas divisões, que permitisse uma identificação do povo com o seu presidente de forma mais directa e intensa, que desse lugar a uma segunda câmara legislativa englobando as autoridades tradicionais e os representantes locais e da sociedade civil, que reforçasse a eficiência e independência da justiça e o pluralismo jurídico, e que, finalmente, superasse as velhas dicotomias entre os partidos ultrapassados, permitindo uma renovação político-partidária, tudo tendo como génese um processo constituinte alargado além dos partidos.

Antevêem-se, pelo menos, dois tipos de críticas a estas ideias.

De um lado, haverá um conjunto de insignes juristas que referirão ter sido a CRA 2010 um exemplo de estabilidade, não se vendo razão para mudanças. O facto é que, se houve estabilidade jurídica, politicamente o país viveu nos últimos dez anos entre crise, recessão, agitação e descontentamento, verificando-se que os mecanismos actuais do Estado não estão preparados para responder aos anseios populares.

De facto, o tempo actual tem demonstrado a inoperância da Constituição em vigor, e estamos por isso no momento ideal para reflectir sobre a sua alteração. Uma nova Constituição deverá surgir de “baixo para cima”, traduzindo de forma natural o sentimento popular, que por sua vez deverá ser canalizado pelos representantes alargados da população angolana.

Do outro lado, haverá certamente quem alegue que uma nova Constituição não é mais do que uma forma de alargar o mandato do actual presidente da República noutras vestes formais. Aqui a resposta é simples. Não há qualquer efeito directo entre uma situação e a outra. É uma decisão do poder constituinte. O poder constituinte é soberano e decide o que entender, por isso pode determinar a impossibilidade de recondução do actual presidente. O que interessa sublinhar é que não só é do maior interesse nacional dotar o País de uma Constituição adequada às suas necessidades reais e futuras, como essa nova Constituição não mais poderá ser “um fato à medida” de nenhum super-presidente – um fato que acaba sempre por se estragar, pois não se ajusta a nenhum ser humano de carne e osso.

Comentários