Juízes de Pedra e Cal

Nos últimos tempos, ocupam o espaço público várias notícias e reportagens que atribuem variadas más práticas, algumas das quais eventualmente criminosas, a presidentes de alguns tribunais superiores de Angola.

Este artigo não se debruça sobre os factos que são imputados publicamente a esses juízes, nem sequer elabora sobre as várias teorias da conspiração que abundam sobre o tema. Num país livre, a imprensa serve para promover uma sindicância livre do exercício do poder, e é isso que está a acontecer.

Contudo, não cabe à imprensa demitir ou confirmar titulares de órgãos de soberania. Essa é uma tarefa para as instituições.

E é nesse âmbito que parece existir um bloqueio. Não consta que nenhuma instituição esteja a tomar medidas efectivas para esclarecer o assunto, o que gera uma bola de neve que poderá tornar-se uma avalanche que submerja o poder judicial. Boa parte da argumentação divulgada sustenta que, se os titulares dos órgãos de soberania judiciais não se demitirem de livre vontade, ninguém tem o poder de os destituir. Invoca-se o princípio da separação de poderes e a falta de normas constitucionais sobre o tema, garantindo-se que a inamovibilidade dos juízes é um dogma inultrapassável.

A posição que aqui defendemos é diferente. Nem a separação de poderes, nem a inamovibilidade dos juízes são referências absolutas e inultrapassáveis. Em vez disso, devem ser lidas nos contextos normativos apropriados.

Comecemos pela separação de poderes. Não existe um princípio fechado de separação de poderes na Constituição angolana (CRA) que impeça os poderes de interagirem. Essa doutrina da separação estanque de poderes está ultrapassada: tendo surgido no século XIX, em França, onde foi aplicada, depressa se percebeu que era impossível vigorar na prática. Hoje é aceite que os poderes têm as suas funções próprias, mas colaboram e estabelecem conexões, pelo que a doutrina francesa, que criminalizava tais intersecções, foi há muito abandonada, mesmo na própria França.

A CRA, aliás, afirma expressamente, no seu artigo 105.º, n.º 3 que os órgãos de soberania devem respeitar a separação e a interdependência de funções estabelecidas na Constituição. Portanto, temos uma actuação dialéctica entre os poderes, conjugando a separação e a interdependência.

É errado pensar que um poder não tem, dentro das normas constitucionais, capacidades de interferência noutro. É errado pensar-se que o poder legislativo não poderá tomar medidas sobre o poder judicial. Veremos como.

As mesmas considerações colocam-se acerca do princípio da inamovibilidade, previsto no artigo 179, n.º 2 da CRA, que determina serem os juízes inamovíveis, não podendo ser transferidos, promovidos, suspensos, reformados ou demitidos senão nos termos da Constituição e da lei. Que os juízes podem ser demitidos nos termos da Constituição e da lei resulta, portanto, evidente da mera leitura desta norma.

Assim, temos que nem a separação de poderes – que também é interdependência –, nem a inamovibilidade – que também é mobilidade nos termos da lei –impedem que os juízes sejam demitidos. O que é obrigatório, isso sim, é respeitar um procedimento apertado, de acordo com a Constituição e a lei.

Fica então a pergunta: qual é o procedimento constitucional para demitir um juiz presidente de um tribunal superior?

Há obviamente a resposta fácil que consiste na aplicação das medidas disciplinares previstas na lei, através do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Contudo, no caso de presidentes de tribunais tal pode não ser possível, quer por razões práticas – formação de maiorias –, quer por razões de arquitectura constitucional – protecção da dignidade das funções.

No entanto, constitucionalmente, há sempre um órgão de soberania que é o repositório da vontade popular, fonte última da soberania una e indivisível (artigo 3.º da CRA). Trata-se da Assembleia Nacional, que, nos termos do artigo 141.º, n.º 2 da CRA, além de exercer o poder legislativo do Estado, “exprime a vontade soberana do povo”. É precisamente este atributo que expressão da vontade soberana do povo que lhe dá vastos poderes, a começar pela revisão constitucional (artigos 233.º da CRA). Se repararmos, a Assembleia Nacional pode assumir, a todo o tempo, poderes de revisão extraordinária, por deliberação de uma maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções (artigo 235.º, n.º 2 da CRA), bem como aprovar alterações à Constituição por maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções.

Significa isto que a CRA atribui um poder constituinte permanente à Assembleia Nacional, dentro dos chamados limites materiais (artigo 236.º) – embora se defenda que mesmo estes podem ser revistos, o que implica uma dupla revisão da Constituição.

É neste contexto do poder representativo da vontade soberana do povo que se entende que a Assembleia Nacional tem poderes próprios implícitos para, em casos graves, deliberar por dois terços dos votos dos deputados em efectividade de funções a demissão de um presidente de um tribunal supremo. Trata-se de uma emanação do poder soberano do povo, última referência do poder constituinte que aqui se atribui à Assembleia Nacional. Em termos práticos, o raciocínio é simples: se dois terços dos deputados podem rever a Constituição, também podem, por maioria de razão, demitir um presidente de um tribunal, sendo tal encarado como equivalente a uma revisão da Constituição.

Por estas razões, as instituições não podem ficar bloqueadas à espera que caia mais uma notícia bombástica nos jornais ou nos portais. É seu dever soberano agir.

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