A Marcha das Crianças e o Estado de Exclusão

Nos últimos dias, temos assistido ao desenrolar do polémico caso do professor primário Diavava Bernardo, que no passado dia 13 comandou uma manifestação de mais de 300 estudantes menores da Escola nº 5008, no município de Viana, Luanda. A manifestação visava apelar à administração municipal de Viana para que providenciasse carteiras para as salas de aula da referida escola. Em reacção, efectivos da Polícia Nacional dispersaram as crianças com um tiroteio e detiveram o professor, entretanto já libertado sob termo de identidade e residência.
Até agora, os debates sobre o caso têm-se centrado nas acções do professor e da Polícia Nacional. Ora, sob vários aspectos, o incidente em causa é um excelente exemplo do estado da educação e da comunicação institucional no país. Deve, por isso, servir para aprofundar as questões estruturais que nos afectam: a deseducação sistémica e a falta de solidariedade social com vista a alcançar o bem comum.
Educar mal
Comecemos pela educação. Desde a independência, as escolas primárias nunca foram unidades orçamentais, logo, nunca tiveram autonomia e fundo de maneio para a sua manutenção, nomeadamente para a reparação ou aquisição de carteiras e a higienização básica das casas de banho.
A este problema junta-se a absoluta centralização e concentração de poderes no presidente da República. Enquanto chefe do governo, é a ele que o Estado “incumbe as atribuições de desenvolvimento, regulação, coordenação, supervisão, fiscalização, controlo e avaliação do Sistema de Educação e Ensino”, segundo a Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino. Este modelo político, ao desprezar a distribuição de poderes e a responsabilização das instituições, inviabiliza o bom funcionamento e a eficácia do sistema de ensino: afinal de contas, tudo depende da vontade, da capacidade e da atenção de um único homem.
No âmbito da descentralização e desconcentração do Estado que tem sido tentada nos últimos anos, as escolas primárias passaram para a tutela das administrações municipais. A título de exemplo, o Estatuto Orgânico da Administração Municipal de Viana (Decreto Executivo n.º 197/20 de 6 de Julho) atribui o planeamento, a construção, o apetrechamento, a gestão e a manutenção das escolas do ensino primário à referida administração.
Ora, em conversa com um administrador municipal, que prefere o anonimato, sabe-se que – como diria o Mestre Tamoda – as administrações municipais, com excepção das de Luanda, recebem um valor mensal de apenas 25 milhões de kwanzas (55 mil dólares) destinados ao programa de combate à fome e à pobreza. “É deste fundo que temos de disponibilizar algum dinheiro para a gestão e manutenção da educação primária. No nosso caso, não temos outro orçamento”. A saúde e o saneamento básico também estão incluídos nos referidos 25 milhões de kwanzas.

A uniformização e a centralização da gestão da vida das populações continua a ser um dos fundamentos doutrinais da classe dirigente para manter a exclusão social da maioria dos angolanos, o seu empobrecimento e deseducação, desse modo garantindo o controlo político e económico ao longo de décadas. Só assim se compreende que seja atribuída a mesma verba à maioria dos municípios do país, como se todos tivessem a mesma dimensão, a mesma população e as mesmas necessidades básicas. Desse modo, para combater a fome e a pobreza em Matala (Huíla), um dos municípios mais populosos de Angola (mais de 800 mil habitantes) e com um índice de pobreza multidimensional que afecta 78,75 por cento da população, a administração recebe os mesmos 25 milhões de kwanzas que são atribuídos ao município do Curoca (Cunene), onde, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, 97,5 por cento dos 55 mil habitantes vivem na extrema pobreza.
Através do Programa de Intervenção Integrado Municipal (PIIM) as administrações municipais estão a construir mais escolas, mas não há previsão de aumento de verbas para a sua gestão e manutenção. Ou seja, caso a política-de-faz-de-conta se mantenha, haverá cada vez mais estudantes (a taxa da natalidade tem subido a um ritmo de mais um milhão de crianças por ano) e muito menos dinheiro para o sector.
O Programa de Governo do MPLA para o actual mandato (2022-2027) não faz qualquer referência, no capítulo da educação, à necessidade urgente de as escolas primárias serem dotadas de orçamentos próprios. Em contrapartida, de forma mirabolante, fala em melhorar “a posição de Angola entre os países da África Subsaariana com os melhores índices de educação”.
Simplesmente, a educação primária, que é a base para o desenvolvimento e o futuro sustentável de qualquer país, é tratada como um mero anexo no capítulo da fome e da pobreza em Angola. Esta é a realidade.
É fundamental que os maiores interessados na educação dos seus filhos nas escolas públicas – a absoluta maioria dos pais deste país, pobres ou de baixo rendimento – sejam os principais promotores do engajamento cívico da sociedade na discussão aberta das políticas públicas sobre a educação. O seu enfoque principal deve ser a advocacia pública para que as escolas do ensino primário passem a ser tratadas como unidades orçamentais autónomas nas contas do governo central de Luanda.
O desprezo generalizado pela educação encontra eco na mentalidade da classe dirigente. A demonstrar isso mesmo, temos o caso das compras feitas pela presidente do Tribunal de Contas, Exalgina Gambôa, para mobilar a sua residência oficial no Talatona. Os 1,625 milhões de kwanzas gastos em luxos absurdos pela principal fiscalizadora das contas públicas do país seriam suficientes para a aquisição de 54 mil carteiras duplas para um total de 108 mil crianças. Hoje, essas crianças têm de estudar sentadas no chão, em latas ou pedras, tudo graças ao comportamento desumano, à pilhagem dos recursos do Estado, ao esbanjamento e à má gestão por parte dos dirigentes. Entretanto, não se vislumbra nenhum movimento judicial ou político no sentido de o Estado reaver esses fundos malbaratados e acabar com a impunidade.
Este pequeno-grande exemplo contradiz o discurso presidencial sobre o Estado da Nação, segundo o qual:
“O executivo continua a trabalhar com foco e empenho para promover a boa governação e a defesa do rigor e da transparência dos actos públicos, a lutar contra a corrupção e a impunidade, a promover a estabilidade macroeconómica e a diversificação da economia, bem como a promover o resgate dos valores de cidadania e a moralização da sociedade.”
Em Malanje, onde abunda a exploração de madeira, uma empresa que fabrica carteiras escolares de elevada qualidade fechou as portas porque nunca recebeu uma encomenda das entidades estatais. E os dirigentes falam em diversificação da economia. Temos madeira e ferro em abundância no país, mas não temos carteiras escolares para centenas de milhares de crianças. Mesmo assim, falamos em melhorias sem que haja capacidade para corrigir situações que apenas requerem bom senso, algum trabalho e menos esquemas e roubos do erário público.

Comunicar pior
Logo após as eleições, o governo de João Lourenço anunciou um novo slogan para definir o seu mandato: “trabalhar mais e comunicar melhor”. O caso da marcha das crianças é paradigmático de como a comunicação institucional tende a piorar e, por consequência, a suscitar reacções desesperadas da sociedade.
Primeiro, para uma melhor comunicação é fundamental que os actos das instituições públicas se conformem, no mínimo, com o bom senso. Fazer disparos para dispersar uma marcha de crianças dos 8 aos 15 anos é um acto aterrorizante, injustificável e traumático para essas crianças. O exercício da autoridade do Estado, em vez de proteger, criou o maior perigo para a segurança e a vida das crianças.
Segundo, a iniciativa, tomada pelo professor Diavava, de mobilizar os alunos menores, em período de aulas, para uma actividade extra-escolar e sem o consentimento dos pais é uma violação do exercício do poder parental, como nota um renomado jurista. “Um professor não pode colocar menores em manifestações sem autorização dos pais. É uma questão estrutural do direito de família e protecção de menores”, afirma o jurista. “Por serem menores, são manipuláveis, têm o que se chama ‘temor reverencial’ ao professor. Por isso, a lei coloca-os na alçada da mãe e do pai”, conclui.
Devem ser os pais, os encarregados de educação, a reclamar, a dialogar ou a protestar contra as condições de aprendizagem dos seus filhos menores, e não estes.
Por outro lado, a iniciativa de Diavava Bernardo põe em destaque a inexistência, no Regulamento das Escolas do Ensino Geral (1998), de quaisquer cláusulas sobre o exercício do poder parental em actividades extra-escolares fora do estabelecimento de ensino. Ou seja, quer à luz da Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino quer à luz do Estatuto da Carreira dos Agentes de Educação, nada para além do bom senso impede que o professor retire a seu bel-prazer menores da sala de aula para um protesto, um concerto ou um passeio. Na verdade, o referido estatuto concita o professor a “criar condições para uma aprendizagem globalizada, adaptando métodos, meios de ensino e formas de organização, para que as crianças vejam a realidade com um todo (Art. 53, 2, a)”. Este articulado vago permite a qualquer professor levar os seus alunos para fora do estabelecimento escolar a pretexto de “criar condições” para melhorar a qualidade de aprendizagem dos alunos, nomeadamente em protestos para exigir o fornecimento de carteiras.
“Fui movido pela compaixão. Na verdade, é doloroso para mim, enquanto docente, ver os meninos sentados no chão e as meninas também enfrentarem o risco de contraírem uma infecção. Aquilo partia-me o coração sempre que cruzava o portão da escola”, afirma Diavava Bernardo em entrevista à Voz da América. “Queríamos apenas ser ouvidos, sem nenhum alvoroço, para conseguirmos aquilo que é necessário para a aprendizagem”, acrescenta.
O porta-voz do comando provincial de Luanda da Polícia Nacional, Nestor Goubel, descreveu o caso à Rádio Nacional de Angola como um acto de vandalização da escola: “Antes de terem saído da escola […] quebraram mais ou menos 50 carteiras.” “Em razão desta situação, o presumível autor de toda esta confusão foi detido e será remetido ao Ministério Público.”
Logo a seguir, o administrador municipal interino de Viana emitiu um comunicado a repudiar a “atitude comprometedora, irresponsável e que colocou em risco a integridade física dos pequenos”. O responsável referiu-se ainda ao perigo a que essas crianças foram sujeitas, pelo facto de terem passado “entre as várias viaturas” a caminho da administração. Este dado é fundamental, porque, segundo a Polícia Nacional, o município de Viana tem o maior índice de atropelamentos do país, com uma média de dois a quatro por dia e mais de 730 a 1460 pessoas anualmente atropeladas. Grande parte dos acidentes ocorre na estrada principal – de circulação rápida –, onde não há semáforos para garantir a travessia segura dos peões e com algumas travessias pedonais espaçadas por quilómetros de distância. Como facilmente se percebe, é importante que as verbas de combate à fome e à pobreza em Viana prevejam a instalação de semáforos, de modo a garantir a travessia segura dos alunos de e para a casa.
O grande problema da comunicação institucional do país reside no facto de os governantes se manterem convictos de que o povo é amigo quando vota e aplaude a sua própria desgraça, mas se torna adversário quando questiona ou protesta contra a má governação. Enquanto não se mudar essa mentalidade, a comunicação manter-se-á contraditória, arrogante e cada vez mais irritante para os cidadãos de bem.