A Legitimidade Popular e as Escolhas da UNITA

A votação obtida pela UNITA nas passadas eleições de 24 de Agosto demonstrou um forte de desejo de mudança popular. A questão que se coloca é a forma como a UNITA poderá capitalizar essa vontade de alteração do estado de coisas.

Recentemente, foi anunciado que o novo presidente da República tomará posse a 15 de Setembro próximo, desde que o Tribunal Constitucional (TC) confirme os resultados eleitorais oficiais anunciados pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE).

Se isso acontecer, quais as vias que têm sido anunciadas como possíveis pela UNITA e quais os seus efeitos?

Normalização: rampa de lançamento

A primeira via é a normalização. Após a decisão do Tribunal soberano acerca da matéria eleitoral, a UNITA tomaria posse, com os seus 90 deputados.

Esta via é bastante disputada nas opiniões publicadas. Contudo, permitiria ao partido canalizar a sua força através das instituições. Com 90 deputados e não 51, a UNITA será uma força com poder de transformação dentro da Assembleia, sobretudo tendo em conta o Regimento de 2017 e a revisão constitucional de 2021, a qual clarificou a lei no sentido do reforço dos poderes do Parlamento na fiscalização do Executivo. Concentrando-se num trabalho parlamentar acrescido e nas eleições autárquicas, a UNITA teria aqui a rampa de lançamento para finalmente vencer as eleições em 2027. Pelo que se percebe a partir das opiniões publicadas, esta via não reúne, por ora, consenso.

Internacionalização: a doutrina da “margem de apreciação”

A segunda via, que na verdade não exclui a primeira, é a internacionalização legal da contestação. Muitos têm defendido que a UNITA deveria contestar os resultados eleitorais junto de um organismo internacional, nomeadamente ligado à União Africana.

Embora se apresente com vestes legais, esta é uma opção essencialmente política.

O princípio da soberania dos Estados, admitindo a recepção do direito internacional, faz sempre depender a sua aplicação a nível interno da vontade do Estado. Mesmo na União Europeia, onde a ideia de partilha de soberania mais avançou no mundo, há sempre o entendimento de que a última palavra compete aos Estados. Daí que à Grã-Bretanha tenha sido possível realizar o Brexit e sair da União Europeia, e que outros países, como a Polónia, ponham em causa as decisões dos tribunais europeus.

Em África, não há sequer essa ideia de para-federalismo, como existe na Europa, e não está implementado qualquer mecanismo de execução interna de decisões externas. Há uns anos, em disputada conversa com um prestigiado juiz inglês, dizia-me ele que o Direito internacional, no final de contas, não era uma realidade, pois não havia exército ou polícia internacional que obrigasse à sua aplicação.

Além do mais, os tribunais internacionais regem-se, geralmente, por uma doutrina chamada “margem de apreciação”.

A “margem de apreciação” é uma técnica interpretativa em casos internacionais e defende que questões em diferendo relacionadas com os poderes de limitação de cada Estado devem ser resolvidas a nível nacional, deixando aos poderes domésticos a devida “margem de apreciação”, não podendo o juiz internacional apreciá-las. Fica assim à responsabilidade de cada Estado nacional estabelecer os limites e as restrições de direitos em face do interesse público e da soberania nacional. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reconheceu esta doutrina pela primeira vez no “caso Handsyde” afirmando que “em virtude do contínuo e directo contacto com as forças vitais de seus países, as autoridades estatais estão, a princípio, em melhor posição do que o juiz internacional para avaliar as exigências morais de suas sociedades”.

O que queremos dizer com isto é que, mesmo que a UNITA encontrasse um organismo internacional que aceitasse exercer jurisdição sobre o tema, provavelmente, em decisão final e em virtude desta doutrina, não obteria qualquer resultado prático, remetendo-se as decisões eleitorais para os órgãos nacionais.

Não tomada de posse: o problema da efectividade de funções

A terceira via, que começa a ser bastante abordada em vários sectores, é a da não tomada de posse. A UNITA proibiria os seus deputados de tomarem posse na Assembleia Nacional. Naturalmente, nada a impede de o fazer.

Na Venezuela de Nicolás Maduro, o líder da oposição Juan Gaidó tentou fazer algo semelhante, mas com isso acabou por entregar o poder a Maduro e esvaziar as suas pretensões.

No entanto, a grande questão que se coloca a esta opção não é de política comparada, mas de Direito constitucional angolano.

Na Constituição angolana, as deliberações fundamentais dos deputados são tomadas segundo o requisito de “efectividade funções”.

Vejamos dois exemplos fundamentais:

– Os quatro juízes do Tribunal Constitucional eleitos pela Assembleia Nacional são-no de acordo com o voto de maioria de 2/3 de deputados em efectividade de funções (art.º 181.º, 3, b da CRA). Isto quer dizer que, se a UNITA não tomar posse, entrega ao MPLA a designação total e completa dos juízes para o TC; ao passo que, se tomar posse, obriga o MPLA a negociar a designação dos juízes. Aqui estaríamos perante uma grande evolução, sobretudo do ponto de vista daqueles que defendem uma democratização pacífica do Tribunal e das instituições.

– As alterações à Constituição são aprovadas por 2/3 dos deputados em efectividade de funções (art.º 234.º da CRA). Significa isto que, se UNITA não tomar posse, o MPLA pode realizar as revisões constitucionais que entender e como entender. Aquele fantasma com que muitos acenaram, sobre um terceiro mandato de João Lourenço, passa a ser constitucionalmente possível.

Aqui temos, portanto, a escolha angustiante com que se depara a UNITA. Se optar por não tomar posse, segue os instintos emotivos e de revolta dos seus apoiantes, mas abre caminho para o total controlo político e legal do partido do governo de todo o Parlamento, o que poderá fazer dentro da Constituição e lei. Refira-se que o artigo 158.º da CRA admite que a Assembleia Nacional funcione em reuniões plenárias com 1/5 dos deputados em efectividade de funções.

Se escolher tomar posse, ouvirá muitas críticas enraivecidas, mas passará a ter uma palavra determinante na escolha dos juízes do TC e impedirá qualquer revisão constitucional com que não concorde.

Revolta: o vazio do desespero

Têm-se levantado algumas vozes em prol de um movimento de revolta que subjugue as instituições a uma vontade popular sentida no eco das ruas. Isto não é solução. Se repararmos, mesmo nas contagens eleitorais privativas da UNITA, a sua posição nunca ultrapassa metade dos votantes e aponta para um empate técnico ou para uma vitória por pequena margem. Tal significa que qualquer revolta teria o condão de dividir o país novamente ao meio. Milhões de angolanos contra milhões de angolanos. Não é o caso de uma enorme maioria estar formada.

Além disso, as experiências de revolta em que esses arautos gostam de estribar-se são as da Primavera Árabe. Ora, o resultado dessa Primavera Árabe é que o povo ficou pior depois da revolta e dos momentos de festim. De pouco adiantou.

Uma nota final sobre o estrangeiro: abandonemos a ingenuidade e reconheçamos que as preocupações internacionais estão com a guerra da Ucrânia e a crise energética. Ninguém será arrastado para uma contenda que prejudique estes aspectos fundamentais. Qualquer mudança em Angola tem de ser realizada com diálogo, bom senso e capacidade de superação das emoções de curto prazo. De outro modo, há demasiados riscos para a população.

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