O FMI Não Vota

Nas recentes eleições angolanas repetiu-se um padrão frequente após as intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI) em determinados países: a população repudia as receitas do FMI e não se comove com os elogios da organização aos governos no poder.

Sem surpresas, este fenómeno aconteceu em Angola. Uma boa parte do escrutínio e do descontentamento traduzido em votos ou em abstenção (outra das vitoriosas destas eleições) resultou do sentimento negativo sobre a economia, em especial, a subida de preços (inflação), o desemprego e a persistência de miséria e fome.

Por várias vezes no Maka Angola alertámos que a receita típica do FMI não era suficiente para resolver os problemas económicos angolanos e que, nalguns casos, não se adequava à situação concreta do país (ver aqui, aqui e aqui).

Em 2018, escrevemos: “Sejamos claros: Angola não precisa de austeridade; pelo contrário, necessita de investimento em infra-estruturas, estradas, comunicações, portos, educação e saúde. Em termos de despesa, o que é imperioso é racionalizar a despesa e acabar com a corrupção. […] Aplicar os quadros mentais da austeridade formados nas escolas do ordoliberalismo germânico não faz qualquer sentido numa Angola pobre e corrupta.”

Isto não quer dizer que algumas iniciativas do governo em parceria com o FMI não tenham sido positivas e promovido resultados benéficos, sobretudo do ponto de vista da criação de um quadro de estabilidade macroeconómica e de solvabilidade das finanças públicas.

Neste tempo de radicalismo exacerbado que pode ter consequências funestas, importa começar por reconhecer o que foi bem feito na economia com a ajuda do FMI: o equilíbrio do orçamento e o controlo da dívida pública – houve um esforço significativo para apresentar finanças públicas saudáveis –, a liberalização do câmbio, o lançamento de uma política a favor do investimento e do mercado e o arranque, finalmente, da famosa diversificação económica. Trata-se de boas iniciativas económicas do governo, que foram implementadas, o que não é de somenos. E deve ser dada continuidade.

No entanto, como também escrevemos, “as políticas do FMI restringem a economia. São políticas de rigor e disciplina, que faltaram nos anos anteriores a 2018 (ano em que o governo realizou o presente acordo com o FMI), não são políticas de crescimento e prosperidade. É preciso complementar estas políticas do FMI com outras medidas que promovam o investimento, que é o motor do crescimento. Caso contrário, será o colapso”.

Além disto, houve algumas prioridades estranhamente ausentes, como o combate à inflação. Ainda hoje não se percebe como é que a taxa de referência do banco central foi quase sempre negativa.

Tendo destacado os acertos da política económica do governo angolano, mencionemos agora certos erros essenciais cometidos nos últimos cinco anos.

Distinguiríamos dois tipos de erros. Um referente ao combate à inflação, outro sobre políticas contracíclicas, sobretudo na área do desemprego e das infra-estruturas.

Em termos de inflação, não é compreensível que se tenha deixado a inflação subir ao longo deste tempo sem que tenham sido tomadas medidas de contenção; só agora se verifica uma descida ligeira. Como é sabido, a teoria indica que a liberalização do câmbio liberta a relação entre taxa de câmbio e inflação, podendo as autoridades internas combater esta sem se preocupar com aquela. Na verdade, num regime de taxas de câmbio flexíveis, a política monetária é livre para responder às mudanças nas condições económicas domésticas, como inflação e desemprego, e os bancos centrais precisam de menos reservas em moeda estrangeira, porque não necessitam de intervir no mercado de câmbio para atingir uma determinada taxa de câmbio fixa.

Ora, o governo e o banco central deviam ter aproveitado os benefícios das taxas de câmbio livre para prosseguirem internamente uma política económica mais activa, que por um lado descesse os preços e ao mesmo tempo impulsionasse a economia e, sobretudo, o emprego.

É evidente que não se trata de uma tarefa fácil. Tradicionalmente, considera-se que pode existir uma relação inversa entre inflação e desemprego: ou se combate o desemprego ou se combate a inflação. É a chamada curva de Phillips, que, contudo, não é consensual entre os economistas.

O problema na política económica adoptada em Angola é que nem se combateu a inflação nem o desemprego; apenas foram tidos em conta os aspectos financeiros e acreditou-se que o mercado privado se encarregaria de colmatar os problemas da economia real.

No entanto, a situação do país exigia uma abordagem diferente. Em primeiro lugar, não existe ainda um sector privado não oligárquico que funcione num sistema de mercado livre. Há que criar o mercado.

Em segundo lugar, em Angola, teria sido possível combater a inflação e o desemprego em simultâneo, se, como tem afirmado o governador do banco central, Lima Massano, a inflação em Angola resulta de constrangimentos da oferta e não de fenómenos monetários. Sendo assim, o que haveria a fazer era desbloquear a oferta, isto é, produzir mais e fazer chegar os produtos ao consumidor. Era aqui que o governo poderia ter implementado políticas activas de emprego e de investimento em infra-estruturas, designadamente em estradas, ao mesmo tempo que combatia a inflação. Ambas as medidas criariam a mão-de-obra e os canais de distribuição necessários para produzir mais e fazer chegar os produtos dos locais de fabrico ou plantação ao consumidor.

Portanto, se a subida de preços resultava da falta de produtos, seria necessário, em primeiro lugar, produzir e, em segundo lugar, distribuir a produção pelos mercados; o papel do governo seria o de activamente promover o emprego e o investimento na produção, e construir as infra-estruturas (estradas e meios de comunicação).

O governo decidiu seguir os manuais de economia norte-americanos. Achou que bastava a estabilização financeira e que tudo o resto funcionaria na perfeição através do mercado. Trata-se, evidentemente, de uma ilusão, tendo em conta a massa enorme de desempregados e a ausência de canais de distribuição, sem os quais não há mercados. Um dia existirá, mas, entretanto, há que ser activo.

Há portanto um equívoco na política económica do governo, que temos referido ao longo destes anos. Numa economia como a angolana, não basta equilibrar as contas, é fundamental estar atento à economia real, ao emprego, à produção, às condições de crédito bancário (quando temos um câmbio fixo e o passamos para flexível, havendo empréstimos indexados ao dólar, são necessárias medidas de adequação, sem as quais o pagamento dos créditos se pode tornar impossível). O governo não pode ficar sentado, à espera que tudo funcione, quando não há nada para funcionar.

O governo fez mal em assentar toda a sua estratégia económica no FMI, pois acabou por agradar aos tecnocratas de Washington, mas não correspondeu aos anseios do povo. E a questão é que o FMI não vota nas eleições angolanas.

Isto ensina que toda a política económica tem de obedecer a cânones ortodoxos como os que o FMI impõe, mas tem também de, em simultâneo, considerar as realidades e estruturas locais. O ideal é sempre uma combinação das duas estratégias, reconhecendo que os mercados privados funcionais, em Angola, não se criam num par de anos. É uma tarefa de parceria entre Estado e sector privado. Em conclusão: o FMI e as políticas por orientadas por esta instituição levaram a um maior descontentamento da população. No entanto, essas políticas eram necessárias. O erro foi não as complementar com medidas activas contra a inflação e o desemprego, promovendo o crescimento económico – e não só – do país.

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