Luanda Derrota Lourenço

Finalmente, pela primeira vez na história de Angola, o parlamento será verdadeiramente democrático e equilibrado, e a voz dos cidadãos terá um grande peso nas decisões legislativas e políticas. É a primeira grande vitória dos cidadãos para a democratização real do país.

As eleições de 2022 são marcadas pela humilhante derrota do presidente João Lourenço na capital do país, em Luanda, onde se concentra um terço do eleitorado nacional. É uma rejeição inequívoca do seu governo, das suas políticas e do desgaste de 47 anos de governação ininterrupta do MPLA, o partido que também lidera. A UNITA ganhou com perto de 63 contra 33 por cento dos votos. Nas eleições gerais, o MPLA obteve uma maioria de 51,07 por cento dos votos, elegendo 124 deputados, enquanto a UNITA teve ganhos na ordem dos 44,05 por cento, com a eleição de 90 deputados, e os restantes partidos mais seis deputados. Estas eleições históricas também serão lembradas pela abstenção da maioria dos 14 milhões de eleitores  (54%).  Ou seja, o “partido da nulidade” venceu as eleições.

Apesar deste resultado histórico da UNITA, o partido denunciou hoje, em conferência de imprensa, alegadas irregularidades resultantes da falta transparência sistémica da Comissão Nacional Eleitoral. Não é de crer, porém, que eventuais recontagens venham a alterar significativamente os resultantes.

O espírito democrático prevaleceu e João Lourenço aceitou com dignidade essa derrota. Agora é tempo de reconciliação e avanço. Cada um deve respeitar as suas vitórias e derrotas, mas sobretudo a vontade do povo. Lourenço deve garantir a transição pacífica do poder.

Lourenço, no início do seu mandato, demonstrou grande coragem ao iniciar o combate contra a corrupção, fez os discursos certos mas faltou-lhe a mesma coragem para reformar e moralizar o seu próprio governo e o sistema judicial a quem confiou a luta contra a corrupção. Sobretudo, as meias medidas e os ziguezagues criaram confusão no seu governo e provocaram rupturas socioeconómicas inexplicáveis.

O eleitorado mais significativo do país uniu-se na sua vontade de mudança, mesmo com a lista de obras feitas apresentada pelo candidato do MPLA nos comícios, de maneira forçada e desmobilizadora. Os slogans da UNITA – ‘a hora é agora’ e ‘mudança’ – tiveram maior apelo junto dos eleitores. Ao longo dos cinco anos de mandato de Lourenço, Luanda teve, com grande instabilidade governativa, quatro governadores, a saber: Adriano Mendes de Carvalho, Luther Rescova, Joana Lina e Ana Paula de Carvalho Chantre (muito pouco conhecida dos luandenses). Nota-se que os milhares de militantes do MPLA votaram contra o seu próprio partido e o seu líder, assim como o pessoal da função pública e das forças de defesa e segurança.

O presidente adoptou um modelo de governação baseado nos poderes imperiais que a Constituição lhe confere e colocou-se na situação de provedor para tudo e todos, a mesma posição que levou ao fim inglório do seu antecessor. Rodeou-se de uma equipa que, no geral, parece ter sabotado mais a agenda presidencial, por obra do seu próprio criador, do que servido as políticas públicas e o bem comum.

Desde as eleições de 2012, o MPLA tem perdido terreno em Luanda, que nessa altura ganhou por 59,47 por cento, contra os 24 por cento da UNITA e os 12,84% da CASA-CE. Já em 2017, o MPLA perdeu Luanda para a oposição, que obteve, no conjunto, 51,79 por cento dos votos (UNITA, 35,43%; CASA-CE, 14,61%, etc.). Simplesmente negligenciou as políticas públicas, de acção governativa, de comunicação e diálogo com os munícipes, cuja multiplicação demográfica na capital é explosiva.

Com esta expressiva derrota, o presidente tem de ser bastante lúcido sobre a forma como quer e deve sair do poder em 2027. Qual é a sua estratégia de saída?

Só com uma estratégia bem definida de saída poderá João Lourenço desempenhar melhor o seu papel – muito mais limitado – de chefe da transição e preparar o país para a nova era, sem a hegemonia do MPLA.

Para já, deve definir se quer cumprir os próximos cinco anos como presidente de todos os angolanos ou continuar a dividir as tarefas com a de presidente do MPLA. O presidente escolheu para a vice-presidência do MPLA e para a vice-presidência da República duas adjuntas inexpressivas, Luísa Damião e Esperança Costa. Com os altos níveis de reprovação do seu governo em Luanda, é altamente aconselhável que Lourenço aplique todas as suas energias nas reformas da administração do Estado e do sistema judicial. Deve entregar um país organizado, no qual possa viver tranquilamente com a sua família e seja tratado com justiça e dignidade quando ostentar apenas o título de ex-presidente.

Deve delegar a liderança do MPLA num grupo de líderes mais dinâmicos que o possam regenerar e adequá-lo às exigências actuais e de futuro. O MPLA está desconectado da realidade dos cidadãos, arrogante e embriagado com o poder. Tem de rever o seu engajamento com os cidadãos e o país. Deve promover a auscultação e o diálogo sincero com a população, na busca de soluções urgentes que garantam educação para todos, que gerem empregos, infra-estruturas essenciais, como água e luz em todo o país, e segurança alimentar a todos os angolanos.

Deve ser o presidente a desmantelar o sistema de partido-Estado, separando com urgência a administração do Estado dos secretariados provinciais e municipais do MPLA. Os governadores, administradores municipais e comunais devem deixar de ser os primeiros-secretários do MPLA. Só assim será possível dar início ao processo de regeneração do MPLA, abandonando definitivamente a sua característica de partido-Estado. E só assim Lourenço passará à reforma sem o rótulo de ter sido o coveiro do MPLA.

No governo anterior, o presidente depositou a sua confiança política num círculo de relações pessoais que o ajudaram a desestruturar o anterior regime de José Eduardo e o próprio MPLA. Faltou criar um novo contrato social com a sociedade e mantiveram-se alguns dos mais frustrantes e velhos hábitos de má governação.

Outro elemento fundamental que foi ignorado durante a campanha eleitoral é o estado das forças de defesa e segurança, particularmente das Forças Armadas Angolanas (FAA). São inaceitáveis as condições de grande parte dos quartéis em Angola e as condições de vida dos soldados, que constituem o principal garante da unidade do Estado e ordem pública. O seu descontentamento também foi agora ouvido nas urnas, e eles precisam de atenção urgente.

Entendemos que se colocam quatro desafios para o futuro.

O primeiro é sobre a nova equipa de governação. Esta tem de ser politicamente ágil e tecnicamente competente. O amiguismo prevalecente na distribuição de cargos públicos e a conversa fátua devem ser abandonados. Deve ser instaurado o primado do mérito e da técnica na escolha dos governantes, bem como a abertura à sociedade participante.

O segundo desafio diz respeito às autarquias, que devem ser implementadas já neste mandato. Isso ajudará a para assegurar uma transição elegante, nomeando-se, desde já, pessoas próximas da UNITA para os cargos de governador provincial de Luanda, Cabinda e Zaire. Assim se demonstrará que o povo tem força e a sua voz foi efectivamente ouvida.

O terceiro ponto prende-se com a reforma do Estado. É fundamental reorganizar o Estado, descentralizando-o, aproximando-o das populações. O centralismo herdado do período soviético e muito enraizado nos actos de governo deve ser definitivamente eliminado. O Estado tem de ser um facilitador e não um obstáculo. O Estado existe para servir o povo e não o povo para servir o Estado.

Finalmente, o combate à corrupção e a reforma do poder judicial têm de ocorrer em simultâneo. Deve garantir-se que a grande corrupção e a captura do Estado são definitivamente erradicadas. Para isto são necessárias medidas arrojadas que visem um tratamento sistemático do combate à corrupção e o reforço da imparcialidade e da capacidade técnica das magistraturas.

Estas são algumas pistas para transformar o voto do povo em mudanças reais, e não mera conversa de circunstância. O povo angolano já percebeu bem o que é a soberania popular e acaba de a exercer com vigor e maturidade.

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