O Estado Angolano no Bolso da Odebrecht

Há algo de estranho nas apropriações públicas, por parte da Procuradoria-Geral da República (PGR), de bens supostamente obtidos de forma ilegal.

O Estado angolano recupera, através de uma “entrega voluntária”, uma fábrica que não apresenta lucros e que tem uma dívida superior ao seu valor real, no total de 500 milhões de dólares. Trata-se de uma mais-valia ou de um prejuízo para o Estado, o qual terá de arcar com esta dívida? É isto que se passa no caso da Biocom, a empresa de produção de açúcar e etanol, cuja gestão se mantém nas mãos da Odebrecht, possivelmente para seu benefício exclusivo, e de forma ruinosa para os interesses angolanos.

Analisemos.

Em Outubro de 2020, a PGR anunciou a entrega ao Estado da totalidade das acções (40%) detidas pelos generais Leopoldino do Nascimento (Dino) e Manuel Vieira Dias Júnior (Kopelipa) na empresa Biocom – Companhia de Bioenergia de Angola. A PGR informou, também, que as referidas acções passavam a integrar, de forma definitiva, a esfera patrimonial do Estado.

Desse modo, os sócios da Biocom passaram a ser os seguintes: Instituto de Gestão de Activos e Participações do Estado (IGAPE) e Odebrecht Angola Projectos e Serviços, Lda. Com 40 por cento cada. Os restantes 20 por cento pertencem à Sonangol, que investiu mais de 90 milhões de dólares no projecto.

A Odebrecht Angola é uma empresa de direito angolano pertencente à Odebrecht Engenharia e Construções. Esta, por sua vez, é detida pela Novonor – o novo nome da Odebrecht Brasil, adoptado depois do escândalo Lava-Jato e dos seus vários sucedâneos, incluindo nos Estados Unidos da América. Portanto, a parte brasileira do negócio da Biocom, que descrevemos em 2019, permanece inalterada.

A Odebrecht Angola detém 40% da Biocom

O investimento

O investimento anunciado no projecto era de cerca de 752 milhões de dólares. Desse valor, apenas 266 milhões de dólares terão sido formalmente aportados pelos accionistas. A contribuição da Odebrecht resultava de uma engenharia financeira muito discutível. A empresa brasileira seria responsável por aportar equipamento no valor de 228 milhões de dólares, mas depois seria reembolsada através do financiamento de um banco brasileiro. Não se entende exactamente o que a Odebrecht entregava a título de participação social efectiva, pois a cada entrada parecia corresponder uma saída.

Do valor global, pelo menos 438 milhões de dólares resultaram de financiamentos bancários, ou seja, a maior parte do investimento no projecto foi assegurada por um sindicato bancário incluindo o BAI, o BFA, ex-BESA (agora Económico), além da Caixa Angola e do Atlântico. Isto implicou, considerando o ano de 2021, que 70% do imobilizado líquido da empresa fosse financiado com dívida bancária.

Hoje, a dívida da empresa à banca, incluindo capital e juros, ronda os 520 milhões de dólares, derivados quer dos investimentos iniciais, quer de cartas de crédito e descobertos para importação de açúcar.

Estes números levantam dois tipos de perplexidades. A primeira diz respeito ao valor do investimento. Fontes oculares que visitaram a Unidade Agro-Industrial da Biocom localizada no município de Cacuso, na Província de Malanje, a 370 quilómetros de Luanda, não conseguem perceber onde foram gastas tantas centenas de milhões de dólares.  

Além disso, a Odebrecht pretende receber da Biocom perto de 228 milhões de dólares pela fábrica de segunda mão por si instalada. Perguntar-se-á então qual o destino dos mais de 400 milhões de dólares de dívida bancárias e qual o papel da Odebrecht nesta situação?

Uma análise dos valores e equipamentos envolvidos não permite aceitar qualquer razão para a Odbrecht ter comprado – enquanto accionista da Biocom – uma fábrica a si mesma no Brasil em segunda mão, por mais de 200 milhões de dólares, e agora querer receber o montante.

A esta perplexidade acresce a excessiva exposição bancária da companhia. Estranhamente, a Biocom alega não ter dinheiro para pagar à banca e não paga. Renegoceia, sempre em valores mais elevados, e ameaça com despedimentos em massa para não pagar.

Nas regras de boa gestão financeira, há algo que escapa. Se repararmos, as contas de 2020 e 2021 evidenciam ganhos antes de juros, taxas e amortizações (em termos técnicos, EBITA) no valor de 27 milhões de dólares. Esse dado parece demonstrar que a operação central da empresa é lucrativa. No entanto, ninguém recebe esses proventos.

Trata-se de uma empresa que cobra rapidamente os valores das vendas e atrasa os pagamentos a fornecedores. Por isso, não se percebe como não se dispõe a liquidar parte dos juros e encargos bancários, com vista a diminuir o peso da dívida financeira.

Odebrecht negoceia consigo mesma

Ora, o Estado angolano é agora o accionista maioritário da Biocom, com 60 por cento do seu capital, e emitiu uma garantia aos bancos que pode ser accionada por incumprimento. Os prejuízos para o erário público podem ser ainda maiores.

Como bem se diz, haverá “gato” na gestão. A empresa tem condições para ser rentável. Contudo, a acumulação e o desleixo com o pagamento da dívida bancária e o estranho negócio entre as Odebrechts Brasil e Angola deixam antever estratégias pouco aceitáveis do ponto de vista da racionalidade económica.

Vejamos alguns indícios dessa gestão polémica.

O Maka Angola tem dados sobre a importação de açúcar do Brasil, pela Biocom, para venda como açúcar angolano, em condições opacas. Esta operação está reflectida nas contas, possivelmente, com passivos bancários descritos como “Descoberto, Carta de Crédito, Açúcar” para um montante de cerca de 70 milhões de dólares e “Contas a Pagar – Fornecedores-Odebrecht” na ordem dos 54 milhões de dólares.

Estranhamente, para além da banca, é a Odebrecht que surge como grande credora da Biocom. São os 228 milhões do equipamento em segunda mão, mais 43 milhões de dólares de passivos correntes e 70 milhões de dólares de contas a pagar.

Como a Biocom não paga à banca, poderá alegar-se que a Biocom existe para ser uma fonte de créditos da Odebrecht, ou, dito de forma simplista, a Biocom só funciona para pagar à Odebrecht.

Estes factos levantam questões fundamentais de foro estratégico e legal.

Primeiro, trata-se das entregas de património por determinadas entidades suspeitas de apropriação ilícita de fundos e actos de corrupção. Há uma base legal desmontável para o efeito quando não há um processo criminal transitado em julgado. O que acontece quando os suspeitos recorrem ao crédito junto da banca privada para alavancarem tais projectos e lhes juntam a Sonangol? Quem paga o crédito bancário? Logo, a “entrega voluntária” da fábrica levanta mais dúvidas, e torna o Estado mais vulnerável a médio e longo prazo, do que providencia soluções. Possivelmente, o projecto de Lei de Apropriação Pública, em discussão na Assembleia Nacional, irá regulamentar estas situações.

Contudo, insistimos num ponto: a apropriação de bens privados para esfera pública a coberto do combate à corrupção pode-se tornar num verdadeiro “cancro” jurídico-económico, porque não tem sido feita com base em lei nenhuma. São actos de vontade sem enquadramento adequado.

A cumplicidade da PGR

Respeitante à Biocom, a PGR deveria ter promovido uma intervenção mais estruturante e debulhadora das incongruências passadas. É incompreensível não ter investigado o papel da Odebrecht em todo o processo de criação e gestão da Biocom.

Também não se compreende que o Ministério das Finanças, que tutela o IGAPE, mantenha a gestão nas mãos da Odebrecht e não se pronuncie sobre a dívida alheia de mais de 500 milhões de dólares que o Estado assume.

Como foi aqui descrito, os números apontam para comportamentos de gestão financeira mal explicados pela multinacional brasileira. Melhor teria sido esclarecer o papel desta companhia antes de lhe entregar, na prática, a gestão actual da Biocom. Não há aqui novidade.

A Odebrecht confessou publicamente nos Estados Unidos da América ter praticado actos de corrupção em Angola. Desde 2017, a PGR nunca se pronunciou sobre o nosso requerimento de investigação quer dos dirigentes angolanos corrompidos quer das práticas criminosas da Odebrecht em Angola, conforme confissão nos EUA.

Nessa medida, a PGR, ao apreender as acções dos generais Kopelipa e Dino, deveria também ter avaliado a cumplicidade quer da Odebrecht, quer de si própria. Em resposta a uma queixa por nós submetida em 2012, o então procurador-geral-adjunto da República Domingos Salvador André Baxe e o então vice-procurador-geral Henriques dos Santos investigaram e concluíram, a 13 de Janeiro de 2013, que os generais Kopelipa e Leopoldino do Nascimento, assim como Manuel Vicente, “não são nem nunca foram sócios da referida sociedade”. O autor da denúncia foi considerado mentiroso. Porém, hoje a realidade demonstra o contrário.

Para ser eficaz, o combate à corrupção tem de abranger actores e facilitadores, incluindo magistrados. Como pode ser dirigido apenas a nacionais angolanos, mostrando-se disposto a perdoar os estrangeiros? Todos os suspeitos de corrupção em Angola, independentemente da sua nacionalidade, têm de ser investigados. A corrupção em Angola não vive sem parceiros internacionais, que colocam o dinheiro, criam investimentos multijurisdicionais e permitem “jogar” com diferentes sistemas financeiros e judiciais. Urge terminar com essa teia internacional. Temos então o Estado, através do IGAPE, como actual sócio da Biocom, tendo entregado a gestão da empresa à Odebrecht. Contenta-se, portanto, em assistir a práticas não explicadas ou foi capturado por outros interesses que não os do Estado? Quem paga a dívida da Biocom e como pode a Odebrecht ter a lata, como se diz na gíria, de ainda vir reclamar uma dívida de mais de 200 milhões de dólares? Perguntas que precisam de respostas urgentes, pelas quais atentamente aguardaremos.

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