A Luta dos Juízes

Algumas correntes influentes na vida política angolana parecem, recentemente, defender uma espécie de niilismo judicial, isto é, que era melhor não existirem tribunais, pois os que existem são meros instrumentos do poder político.

Não subscrevemos essa posição. Hoje há uma discussão sobre a justiça como não se via há pelo menos dez anos. As decisões dos tribunais são analisadas, vigiadas e criticadas. Houve uma evolução significativa da consciência jurídica nos sectores interessados na discussão racional do futuro do país. Mesmo que alguns estejam descontentes com os juízes, isso é um sinal positivo, bem melhor do que ignorar as decisões judiciais. Tal não significa que o poder judicial seja exemplar ou que opere adequadamente. As suas disfunções foram recentemente bem escalpelizadas por Rafael Marques.

A perspectiva que aqui defendemos é que um poder judicial robusto é uma condição essencial para a democracia e, nessa medida, o importante é colocar os juízes e o funcionamento dos tribunais no centro das atenções e insistir na construção de um caminho rumo a uma magistratura independente e eficiente.

No mesmo sentido, é de aplaudir alguma intervenção pública dos juízes, designadamente apresentando propostas de alterações legislativas ou criticando construtivamente leis aprovadas pela Assembleia Nacional. É bom ver que o poder judicial se mexe e se interessa. É sinal de que está vivo e de que começa a desempenhar o seu papel.

Dois documentos foram recentemente produzidos por grupos de juízes. O primeiro denomina-se “Sugestões para alteração de algumas disposições do Código do Processo Penal”. Neste documento de 19 páginas bem fundamentadas os juízes avançam com algumas propostas, essencialmente de índole prática, para melhorar o funcionamento do Código do Processo Penal.

A necessidade que os juízes tiveram de elaborar e apresentar um documento deste tipo deve chamar a atenção aos responsáveis pelo processo legislativo. É primordial ouvir as pessoas interessadas e que vão ser os destinatários primordiais da legislação. No caso do Código do Processo Penal, e especificamente no que concerne às recentes alterações, teria sido muito proveitoso ouvir os juízes, os procuradores, os advogados e os funcionários judiciais antes de se proceder a alterações após tão pouco tempo da sua entrada em vigor. Ouvir não quer dizer seguir caninamente, mas estar preparado para um processo deliberativo participado, que deve ser a norma numa democracia.

É isto que acontece com a “Sugestão para alteração” apresentada pelos juízes. Esta proposta contém aspectos com que não concordamos, como o aumento dos prazos da prisão preventiva devido à escassez de recursos humanos e técnicos (artigo 283.º). Não se trata de um argumento atendível, pois está em causa a liberdade humana. Mas aplaudimos a ideia de retirar ao Ministério Público o poder de aplicar variadas medidas de coacção. Têm razão os juízes quando referem que matérias atinentes à restrição de direitos, liberdades e garantias devem depender apenas e só de deliberação judicial (artigo 312.º). Como também têm razão as propostas específicas sobre tramitação, nomeadamente as que dizem respeito à precisão das situações em que não há instrução contraditória, como no caso dos chamados processos especiais, sendo evidente que deverá existir quando o Tribunal Supremo funciona como primeira instância de julgamento, ao contrário do que agora parece indicar a lei (artigo 332.º). Também subscrevemos a proposta de diminuir o prazo de interposição dos recursos de 20 para 15 dias, de forma a garantir a celeridade processual (artigo 475.º).

Estes são alguns exemplos das 12 propostas apresentadas pelos juízes para alterar o Código Processo Penal e que deveriam ser tidas em conta pelo legislador soberano. Sublinhe-se que ter em conta não é aprovar, mas sim ouvir e reflectir.

Com um cariz um pouco diferente, mas representando o mesmo interesse dos juízes na evolução legislativa, encontra-se o memorando da comissão para análise da recente Lei n.º 3/22, de 17 de Março, que aprova a Lei Orgânica do Tribunal da Relação. Esta comissão foi criada no âmbito do Conselho Superior da Magistratura Judicial e é coordenada pela magistrada Henrizilda do Nascimento. O memorando é bastante crítico da legislação atinente ao Tribunal da Relação. Sobre o artigo 10.º epigrafado “Quadro de Juízes”, afirma a comissão que a solução encontrada pelo legislador é um  “desperdício intelectual de quadros que o Estado angolano investiu na sua formação para o desempenho desta actividade, desprestigiando a nobre função para qual foram providos, e por fim, o indesejado desperdício financeiro”, acrescentando ainda que a “opção legislativa contribuirá para que não exista distribuição e volume de trabalho equitativo entre os juízes que integrarão as câmaras criadas pela presente lei, prejudicando a avaliação do desempenho dos juízes que estiverem colocados nas Câmaras em que não exista demanda processual”. Acerca das tabelas salariais (artigo 61.º), as críticas são muitas e essencialmente resultam da perda de várias vantagens e benefícios antes existentes. Um dos aspectos mais disputados pelos juízes é o facto de haver uma mistura entre remunerações e categorias. Aparentemente, em certas circunstâncias um juiz de direito pode ganhar mais do que um juiz desembargador, o que se torna estranho, pois a uma progressão na carreira deve corresponder um aumento salarial, e não uma diminuição. Por esse motivo, esta comissão propõe que se consagre uma “remuneração líquida global intermédia, superior à categoria de base e inferior à do topo”. Tudo visto, o que importa reter é que existe um profundo movimento dentro e fora da magistratura em prol da sua reforma adequada e funcional, e é esse movimento que deve ser apoiado e estimulado. A reforma do poder judicial é a pedra de base para construir a democracia e o Estado de direito.

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