O Lado Obscuro do Julgamento dos Tigres
O julgamento de Pedro Santos Monteiro e de mais 29 alegados ex-Comandos Tigres acabou em absolvição, deliberada pelos juízes da 6.ª secção dos crimes comuns do tribunal provincial da comarca de Luanda.
Num acórdão exemplar, o colectivo de juízes presidido por Josina Falcão, auxiliada pelos juízes Joaquim Salombongo e Manuela Vatana Soares, concluiu que a acusação não tinha sido comprovada em audiência, quer por falta de prova dos factos, quer pelo não preenchimento dos tipos criminais. Escreveram os juízes: “Em conclusão entendemos nós que (…) não se encontram preenchidos todos os elementos do crime, atendendo a toda a matéria aqui vertida, e da análise crítica da prova de forma atenta (…) não existe prova bastante, bem como por não [estarem] preenchidos os elementos dos tipos incriminadores de que os mesmos vêm acusados.” (Acórdão, p. 65)
Como escrevemos anteriormente no Maka Angola, face ao conteúdo jurídico da acusação e à matéria provada em julgamento, não se vislumbrava qualquer possibilidade de condenação neste processo. Os magistrados judiciais concluíram, e bem, pela absolvição dos arguidos.
Esta absolvição merece dois comentários, antes de se tentar perceber as razões pelas quais o processo foi instaurado e a anomalia de que se revestiu.
O primeiro comentário é que a absolvição e a forma como este julgamento foi conduzido, numa altura em que tem sido publicamente colocada em causa a independência dos tribunais, devem ser destacadas enquanto evidência da imparcialidade e do rigor técnico da magistratura judicial.
É precisamente de juízes deste calibre – que aplicam a lei e que olham para os factos – que Angola necessita. Não de juízes comprometidos com “ordens superiores”, interpretações marxistas, corruptas ou funcionais do direito, mas sim de juízes que respeitam e cumprem o seu mais elementar dever: avaliar os factos objectivamente e aplicar a lei.
O segundo comentário vai para a fragilidade da acusação. Desde cedo se percebeu que o documento apresentado pelo Ministério Público (MP) era pouco consistente, e ademais parecia que o procurador responsável por apresentá-lo em tribunal se sentia pouco confortável.
Forçosamente, tem de haver uma revisão do modo de agir do Ministério Público: as investigações e acusações têm de ser mais rigorosas e aprofundadas, e os magistrados que investigam e acusam, pelo menos nos processos mais complexos ou importantes, devem ser os mesmos que vão a julgamento. Tem de existir um seguimento profissional e técnico ao longo de todo o procedimento do Ministério Público.
O mais interessante de inquirir, agora que foi feita justiça, são as razões pelas quais este processo surgiu. No centro da acusação encontra-se um declarante chamado Denda Severino, o qual, segundo o Acórdão, se arroga o direito de ser o único membro com legitimidade para falar em nome dos Comandos Tigres. De resto, auto-intitulou-se “comandante-em-chefe do Exército Comandos Tigres”.
Em 2016, conforme os factos descritos no Acórdão, Denda Severino começou a reorganizar, em sua casa, no distrito do Rocha Pinto, em Luanda, o grupo dos Comandos Tigres, destinado à reivindicação dos seus direitos. Nessa residência, consta igualmente do Acórdão, “discutiam os planos de actuação, assim como elaboravam cartas e ofícios a solicitar a participação e o reconhecimento do Estado em relação aos seus direitos”.
Samuel Malongo, tratado como coronel e comandante coordenador-geral dos referidos comandos, liderou o grupo que se afastou de Denda Severino. A acusação do Ministério Público destacou-o como cabecilha do grupo envolvido em associação criminosa, associação de malfeitores, desobediência qualificada, burla por defraudação, entre outros crimes.
De recordar que, a 10 de Novembro de 2020, a Polícia Judiciária Militar (PJM) procedeu à detenção de 187 indivíduos, incluindo Samuel Malongo, que se encontravam reunidos num descampado no Km 38, município de Viana. Nessa altura, a PJM justificou a acção como cumprimento de uma directiva emanada do comandante da Região Militar de Luanda, tenente-general Rui Lopes Afonso. Tal directiva tinha como objectivo, segundo reprodução constante do Acórdão, “materializar uma ordem do presidente da República e comandante-em-chefe das Forças Armadas Angolanas, que se consubstancia no desmantelamento da Unidade Militar, de Ex-Comandos Catangueses, localizada no Km 38, nas imediações do futuro Aeroporto Internacional de Luanda”. Na sentença, o tribunal especifica não ter visto qualquer documento a comprovar uma ordem do presidente da República para o efeito.
Coube à juíza Josina Falcão e seus juízes assistentes explicarem ao Comando da Região Militar das FAA em que consiste uma unidade militar e um campo de concentração militar, bem como a diferença entre ambos. O tribunal analisou as provas apresentadas pela PJM e concluiu sobre a inexistência de uma unidade militar no local. Também concluiu pela inexistência de um campo de concentração militar, ideia sustentada contraditoriamente pelo tenente-general Rui Lopes Afonso. No local, numa zona habitada, havia uma pequena lavra de mandioca, um buraco de quatro metros para construção de um tanque de água e algum material de construção.
O tribunal descreve as graves e contraditórias informações prestadas pelo Comando da Região Militar de Luanda. Salienta a irresponsabilidade com que se alude ao nome e à autoridade do presidente da República, sem necessariamente o seu conhecimento prévio ou domínio dos factos, para a resolução arbitrária de interesses de grupo.
Mas, na realidade, não é isto o mais grave.
Respeitando a sentença, em momento algum o criador de uma força paramilitar paralela, o autodenominado general Denda Mobunda Severino, foi detido. Pelo contrário, terá sido o “comandante” Denda Severino quem lançou as acusações sobre os denominados Comandos Tigres com quem se haverá desentendido. Severino passou a ser o principal informante das autoridades militares e apareceu no julgamento como declarante, para sustentar a acusação infantil da Região Militar de Luanda.
Na verdade, Denda Severino constituiu uma verdadeira organização denominada “Comando Tigre em Exílio”, que cria zonas militares, exara despachos e emite guias de marcha. Severino assina como general, por cima de um carimbo com os dizeres “República de Angola, Tropas Especiais, Força Militar Comando Tigre”. Ainda a 6 de Dezembro de 2021, Severino emitiu uma guia de marcha para a deslocação do suposto coronel Geremias João Kumbana, para este exercer a função de chefe de Transportes na Zona Militar de Cafunfo. Essa guia tem a autorização do “brigadeiro” Kikomo Nzila, o visto do “general” Denda Severino e o suposto visto da Polícia Militar das FAA. Como se sabe, a região diamantífera de Cafunfo, na província da Lunda-Norte, é a maior região de garimpo do país, onde se assiste ciclicamente a episódios de extrema violência, incluindo contra a autoridade do Estado.
No mesmo dia, com o mesmo procedimento, foram emitidas guias para um “major” Abel Mateus Simão Jila, para, com a ordem n.º 00190/21, exercer a função de chefe de Pessoal e Quadros na Zona Militar de Cafunfo.
A arbitrariedade na atribuição de patentes e funções é recorrente na estrutura militar paralela de Denda Severino. Senão, vejamos: pela ordem n.º 00430/21, de 1 de Março de 2021, o autoproclamado comandante-em-chefe do Comando Tigre emitiu o Passe Militar n.º 318 ao “capitão” Serafim P. Mualucano, com a função de mecânico na Zona Militar de Cafunfo; por sua vez, no mesmo dia, o “capitão” José David, pela ordem n.º 00040/21, recebeu o Passe Militar n.º 37, para exercer a função de oficial de Informação da Zona Militar de Luanda.
Estamos a assistir, como se pode inferir a partir destes exemplos de uma longa lista, à constituição de uma espécie de força com tendências paramilitares que ameaça o monopólio constitucional das Forças Armadas Angolanas.
A isto se deve o espanto do Maka Angola e é esta a razão para as nossas inúmeras chamadas de atenção acerca da disfuncionalidade de muitas instituições do Estado. Neste caso, trata-se do Comando da Região Militar de Luanda.
Alguém – aqui, o “comandante” Denda Mobunda Severino – cria uma estrutura paramilitar, e acusa outros de fazer isso mesmo. As FAA, representadas pela Região Militar de Luanda, assim como a Procuradoria-Geral da República, seguem as indicações de Denda Severino e produzem acusações criminais em que o autodenominado comandante-em-chefe do Comando Tigre em Exílio surge como acusador.
Estamos perante uma confusão que transcende o processo judicial em causa. Mas há questões que precisam de resposta: Qual é a razão para o Comando da Região Militar de Luanda das FAA proteger Denda Severino, quando este parece gerir uma organização paramilitar? Qual é o papel do comandante da Região Militar de Luanda, tenente-general Rui Lopes Afonso, nesta história? Qual é o posicionamento do Estado-Maior General das FAA sobre o caso de Denda Severino? O comandante-em-chefe das FAA deve ignorar o uso abusivo do seu nome e da sua autoridade nesta história estapafúrdia, ou que medidas deve tomar? Como se pode levar a sério um exército que já foi dos mais poderosos de África e que travou algumas das maiores batalhas modernas no continente com este tipo de brincadeiras?
A “invasão” dos comandos das FAA
Vale a pena referir ainda a disfuncionalidade da Região Militar de Luanda e da cadeia de comando nas FAA. A 25 de Setembro de 2020, o tenente-general Rui Lopes Afonso requereu ao chefe do Estado-Maior das FAA, general Egídio de Sousa Santos “Disciplina”, o uso de força militar para uma operação contra uma composição de cerca de cem comandos da Brigada de Tropas Especiais das FAA, fortemente armados, até com granadas. O tenente-general alegava, no pedido, que os comandos foram apanhados em flagrante a invadir terrenos nas imediações do Estádio de Futebol 11 de Novembro, em Luanda.
Com efeito, o tenente-general Rui Afonso solicitava ao seu superior hierárquico o reforço das tropas sob seu comando, com mais um pelotão de Tropas Especiais (comandos). Propunha, em conclusão, a instauração de medidas criminais contra o suposto comandante dos comandos “invasores”, tenente-coronel Daniel Neto, e “outros implicados, em defesa do bom nome e do prestígio das FAA”.
A operação contra a “flagrante” invasão de uma companhia de comandos em plena capital do país ocorreu passados dois meses de terem sido vistos a realizar a ocupação territorial nas imediações do Estádio 11 de Novembro.
O relatório sobre a operação, datado de 9 de Dezembro de 2020, é simplesmente assombroso. A operação mobilizou 542 efectivos militares e policiais, e reuniu três oficiais generais e o comandante da Unidade Operativa de Luanda da Polícia Nacional, comandados pelo tenente-general Rui Lopes Afonso. O arsenal militar correspondente incluía cavalos, três autocarros, três camiões e mais 23 viaturas.
Em resultado desta grande operação militar, o tenente-general Rui Lopes Afonso apresentou a detenção de um sargento do Serviço de Inteligência e Segurança Militar (SISM), José Simba, que se encontrava na sua residência, no Distrito do Patriota. Ora, o Patriota situa-se noutra jurisdição, fora da zona do 11 de Novembro, que pertence ao Distrito da Cidade Universitária. A 2 de Dezembro de 2020, a operação do tenente-general Rui Lopes Afonso dedicou-se a destruir casas no Distrito do Patriota, incluindo a do sargento José Simba, que iniciou a construção da sua residência em 2018 e nada tinha a ver com a suposta invasão dos comandos das FAA no 11 de Novembro. Ao questionar pessoalmente o general sobre as razões para a destruição da sua casa, Simba foi detido por desobediência e passou três dias nos calabouços da Região Militar de Luanda. O sargento será julgado em Fevereiro próximo, por conduta indecorosa e ofensas contra superiores. Na acusação contra si não consta qualquer acto de ocupação ilegal de terreno, nem o facto de as FAA, com o apoio da Polícia Nacional, terem destruído à bruta a sua residência principal de quatro quartos e os anexos com mais três quartos, sem qualquer mandado administrativo ou judicial.
Do relatório consta também a detenção de um agente da Polícia Nacional e de dezenas de camponeses da zona do Kilamba. Em termos militares, a operação apreendeu seis armas a uma empresa privada de segurança, a Pealaz, que também nada tinha a ver com a suposta “invasão” dos comandos.
Em resumo, não há registo da detenção de nenhum dos mais de cem comandos “invasores” afectos à Brigada de Tropas Especiais, mas sim de camponeses.
Parece evidente, neste caso, o uso abusivo de forças militares por parte um comandante, que assim decidiu tratar de assuntos que não são da competência das FAA. Certamente, a Brigada de Tropas Especiais tem a sua unidade devidamente identificada, assim como os seus efectivos. Os procedimentos disciplinares e criminais poderiam ter sido instaurados contra os supostos “invasores”, sem necessidade de movimentação de uma força desproporcional de militares para, na verdade, destruir residências no Distrito do Patriota, numa área disputada por generais devidamente identificados e já reportados.
As FAA foram erguidas com o sangue de incontáveis vidas angolanas. Merecem um comando que, pelo menos, confira dignidade aos soldados e veteranos de guerra, bem como seriedade, respeitabilidade e prestígio à instituição junto da sociedade.