O Presente de Natal do FMI e o Sonho do Faraó

O Natal é tempo de contraste. O futuro rei do universo – Cristo-rei, segundo a regra católica instituída pelo papa Pio XI em 1925 – nasce numas palhinhas numa cabana, aquecido apenas pelo bafo de um burro e de uma vaca. O rei está na cabana despojado.

O mesmo contraste foi introduzido no passado dia 22 de Dezembro pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) ao congratular efusivamente a política económica de João Lourenço numa época em que a população angolana se debate com inúmeros problemas de escassez, problemas e fome. Para o FMI, parece tudo no melhor dos mundos. Para o povo, parece que mais uma maldição bíblica desceu sobre as terras angolanas, tal como “as sete espigas miúdas e queimadas do vento oriental” que representam sete anos de fome no sonho do Faraó (Génesis, 41, 26).

Cada um pensa apenas com o estômago e não entende as palavras de Antoinette Sayeh, directora-executiva-adjunta do FMI, que são a melhor prenda de Natal que João Lourenço poderia ter recebido da organização internacional.

A economista liberiana, doutorada em Relações Económicas Internacionais pela Fletcher School da Tufts University (EUA), ao anunciar a avaliação positiva da sexta revisão que o Fundo fez ao programa de apoio a Angola no passado dia 22 de Dezembro, afirmou: “As políticas prudentes das autoridades angolanas contribuíram para o fortalecimento da estabilidade e sustentabilidade do programa, apesar das difíceis condições económicas. (…) Esta disciplina política e compromisso com as reformas também começou a melhorar o desempenho económico, colocando Angola no caminho da recuperação dos choques múltiplos e da recessão plurianual que enfrentou.”

Com o elogio, e com a esperança da retoma de crescimento, vêm mais 748 milhões de dólares para Angola provenientes do FMI. No entanto, o mais importante para o governo não será tanto o dinheiro, mas o elogio rasgado das suas políticas que é feito pelo FMI. Há uma certificação pública internacional da correcção do caminho de reformas económicas e do rigor financeiro que João Lourenço tem tentado imprimir em Angola.

Em concreto, os encómios do FMI referem-se à contenção fiscal (isto é, redução de despesas ou subida de impostos), que permite controlar o Orçamento Geral de Estado e apresentar um excedente; à redução do peso da dívida pública no produto interno bruto (PIB); e à política monetária restritiva do banco central (menos moeda em circulação na economia para conter a inflação).

Após a implementação destas políticas, o FMI espera que a economia angolana comece, finalmente, a crescer, alcançando um valor de aceleração do PIB na ordem dos 4% ao ano a médio prazo.

Estando perante boas notícias, o certo é que a realidade sentida pela população, que se queixa amargamente dos preços altos, da falta de produtos e, em muitos locais do país, da fome, não corresponde às palavras beatíficas do FMI.

A explicação para este contraste é muito simples. As políticas do FMI restringem a economia. São políticas de rigor e disciplina, que faltaram nos anos anteriores a 2018 (ano em que o governo realizou o presente acordo com o FMI), não são políticas de crescimento e prosperidade. É preciso complementar estas políticas do FMI com outras medidas que promovam o investimento, que é o motor do crescimento. Caso contrário, será o colapso.

Há que ser realista e entender o que está em causa para se perceberem as relações de causa e efeito. Não existe nenhuma relação directa entre a política de contenção orçamental e monetária que está a ser prosseguida e aplaudida pelo FMI e o necessário crescimento económico. Ligar os dois fenómenos é um acto de fé sem base factual.

O funcionamento da economia é mais complexo. O que o modelo do FMI (e, supõe-se, do governo angolano) assume é que a capacidade do governo para controlar o seu orçamento e reduzir a inflação demonstrará tratar-se de um governo em que se pode confiar do ponto de vista económico, por criar as condições de estabilidade macroeconómica fundamentais.

A partir dessa estabilidade macroeconómica e da confiança na capacidade do governo, surgirá aquilo que é necessário para existir o crescimento económico e diminuir o desemprego: o investimento.

Portanto, as políticas do FMI podem ser condição necessária para o crescimento, mas não são condição suficiente. Dito de modo simples: as políticas do FMI ajudam a “arrumar a casa”, mas não geram prosperidade. Na realidade, até retraem a economia, pois retiram dinheiro de circulação ou diminuem o rendimento disponível, um facto que a população está a sentir no seu dia-a-dia.

Consequentemente, é necessário dar o salto do investimento para garantir o crescimento económico e minorar o contraste sentido entre o que o FMI proclama e o que as pessoas sentem. E é para assegurar o investimento que o governo tem de agir agora, caso contrário as medidas adoptadas por imposição do FMI apenas terão como resultado deprimir a economia.

O investimento divide-se em público e privado, e não se deve assentar um processo de aceleração de desenvolvimento apenas num desses sectores. A aposta certa é naquilo a que recentemente Mariana Mazzucato, do University College of London, chamou “economia de missão”, isto é, um modelo de organização económica em que se estabelecem objectivos e depois se afectam recursos partilhados do público e do privado. O governo deve ser um investidor de primeiro recurso para dinamizar a economia, a par do sector privado.

Nestes termos, devem agora ser estabelecidos objectivos de crescimento económico e missões concretas a desenvolver pelo mercado em parceria com o Estado.

Depois de estabelecidos objectivos, devem ser proporcionados os elementos básicos que levam os empresários a investir. Tecnicamente, o investimento pode ser apresentado como resultante do rendimento esperado e das taxas de juros, dadas pela relação I = f (Y, r), com a taxa de juros afectando negativamente o investimento, uma vez que é o custo de aquisição de fundos para comprar bens de investimento, e o rendimento influenciando positivamente o investimento porque, obviamente, um rendimento mais elevado sinaliza maiores oportunidades de vender os bens produzidos.

Simplificando, para que haja investimento o ideal é haver taxas de juro reduzidas (e bancos a emprestar dinheiro) e expectativas elevadas de lucro.

Nesta medida, para que exista investimento num determinado país é essencial dispor de acesso fácil e de baixo custo a dinheiro, implicando, por exemplo, que os bancos tenham liquidez e juros razoáveis, e expectativas de lucro elevadas, não havendo o perigo de os lucros virem a ser “roubados” por um sócio local, ou desviados numa contenda judicial que dure anos, ou eliminados por impostos confiscatórios, ou reduzidos por alguma revolução, nacionalização ou golpe de Estado.

Daí que, em concreto, o governo deva providenciar um sistema bancário com liquidez e taxas de juro atractivas; um sistema judicial funcional; estabilidade política e normativa; impostos consensuais – em resumo, um clima social adequado ao empresário inovador. Tal implica restringir o poder dos oligarcas ou membros do governo/partido na esfera económica, permitir a concorrência entre todos e adoptar práticas transparentes no comércio.

Não é obviamente um programa fácil. Retomar uma política efectiva de investimento que traga crescimento económico e diminua o desemprego é uma tarefa hercúlea que implica o esforço público e privado, envolve governo, os empresários, os bancos e os tribunais. A contestação a que se assiste actualmente em Angola é um sintoma positivo: o país está num momento de viragem, e sempre que se muda logo surge a oposição dos “situacionistas”. A questão é que essa mudança, para ser positiva em termos económicos, implica muito mais que obedecer à cartilha do FMI. Implica criar verdadeiras condições para um investimento livre e produtivo em Angola. É este o desafio.

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