Crise e Competência

“Os 657 projectos cujos financiamentos já foram desbloqueados pelos bancos, no âmbito do Programa de Apoio à Produção, Diversificação das Exportações e Substituição das Importações (PRODESI), têm apenas uma execução física de 11,58%, de acordo com dados publicados no site do PRODESI.” (ver aqui)

“O Fundo Monetário Internacional (FMI) piorou a previsão de crescimento para Angola, antecipando agora uma recessão de 0,7%, a sexta queda anual consecutiva da riqueza do país.” (ver aqui)

Incompetência e crise podem ser os qualificativos aplicados aos dois factos previamente descritos.

Comecemos pela crise económica e a sua relação com a incompetência.

Num exercício meramente simbólico, poderemos dizer que um quarto da crise económica é provocado pela incompetência dos agentes públicos e privados que detêm responsabilidades na economia.

Os restantes três quartos da crise são originados por outros três factores: i) o erro estrutural das políticas económicas e de reconstrução de José Eduardo dos Santos iniciadas em 2002 e que desembocaram no atoleiro de 2015/2016; ii) as políticas restritivas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e aplicadas desde finais de 2018 (as quais eram parcialmente necessárias, mas exigiam complementos favoráveis ao crescimento não utilizados); e iii) o efeito da Covid-19, que resultou numa grande contracção da produção em 2020, pressionou severamente os saldos externos e reduziu ainda mais o rendimento médio dos angolanos.

Debrucemo-nos sobre a incompetência. Muitos analistas e críticos têm chamado a atenção para o fosso acentuado que existirá entre os discursos de João Lourenço e a realidade concreta, de um modo geral, atribuindo ao presidente da República uma faceta dupla ou ambígua. Não partilhamos dessa visão, e entendemos que o cerne da questão se coloca na competência dos quadros e nas capacidades de execução.

A retórica do presidente João Lourenço é bem-intencionada e apresenta um modelo de desenvolvimento para Angola assente numa transição para a democracia e o estado de direito, no estabelecimento do mercado livre e concorrencial, com aposta na produção nacional (como fizeram os actuais países desenvolvidos nos seus arranques, nos séculos XVIII e XIX, ao contrário do que é dogmaticamente alardeado hoje em dias), e no combate à corrupção. Tudo isto tem avançado, mas tem também encontrado obstáculos, desvios, incompreensões e atrasos.

O problema que se detecta é, essencialmente, o da incompetência e incapacidade. O fosso entre a retórica e a prática não deriva de nenhuma maldade, nem nenhuma conspiração assenta em qualquer quimbanda. O fosso que é preciso diminuir decorre da falta de habilidade para fazer algo com sucesso ou como deveria ser feito, isto é: da incompetência.

O caso mencionado no início deste texto sobre a execução do PRODESI é típico da incompetência e da falta de responsabilidade política e técnica dos agentes públicos e privados. Como é possível que um programa apresentado como chave para o desenvolvimento do país tenha uma execução tão ridícula?

Lembremos as palavras do ministro de Estado Nunes Júnior: “A solução estrutural está na retoma do crescimento económico. Iniciativas como o Programa de Apoio à Produção, Diversificação das Exportações e Substituição das Importações (PRODESI), o Programa Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM) e outros foram desenhados exactamente para permitir que o país entre novamente e rapidamente para a trajectória do crescimento económico.”

Parece que o desenho não saiu do papel, pois, como refere a notícia acerca do PRODESI que vimos citando: “[A execução do PRODESI é] uma execução muito baixa e que […] compromete o discurso oficial sobre o aumento exponencial da produção nacional que diariamente aparece nas televisões e rádios.”

É evidente que o obstáculo não está na política desenhada pelo governo, mas sim na sua execução. Há que olhar para os aspectos práticos das políticas e criar regras que obriguem a actuações competentes e não desleixadas. Torna-se necessário introduzir um conceito operativo de competência para a execução das políticas públicas.

Este conceito, em primeiro lugar, deve privilegiar a compreensão das políticas governamentais, bem como a compreensão do processo pelo qual essas políticas são elaboradas, as forças que podem afectar o processo e os seus resultados. Assim, há que informar e explicar o que se está a fazer, como se está a fazer e o que se espera que aconteça. Essa informação tem de chegar, antes de tudo, aos agentes públicos que executam a política do governo.

Em segundo lugar, a competência deve ser o critério de escolha dos decisores para definir os seus auxiliares. Em vez dos tradicionais laços partidários, familiares ou de qualquer conhecimento informal pessoal, devem-se seleccionar as pessoas mais aptas para desempenhar determinada tarefa.

O princípio é muito simples e é visível nas selecções nacionais de futebol. Quando o treinador de Angola ou de Portugal escolhe os seus avançados ou pontas-de-lança, não vai procurar o primo ou o amigo com quem bebe cervejas: vai buscar quem marca golos. É simples.

Na administração pública também se deve escolher quem marca golos. Se o critério que actualmente vigora nas escolhas da alta administração pública angolana fosse aplicado a uma selecção de futebol, o Cristiano Ronaldo nunca teria saído da Madeira e entrado na selecção nacional portuguesa.

Por fim, a competência deve implicar a participação, vista em dois sentidos. Os vários agentes públicos e privados afectados pelas políticas devem ser ouvidos para o seu desenho mais efectivo, mas adicionalmente, com a aprovação e implementação das políticas deve existir uma constante auditoria com feedback.

Os serviços de auditoria e inspecção do Estado devem ser reforçados e encarados como uma espécie de cavalaria presidencial móvel, que vai assegurar que os projectos são executados sem falhas, sem desvios e a tempo.

Deveria proceder-se à constituição de uma força de elite do Estado vocacionada para a concretização e fiscalização de todos os grandes projectos aprovados pelo governo.

Temos de passar das ideias e dos discursos aos actos. Nada como aproveitar o legado filosófico de Karl Marx para sintetizar: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”

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